“Devias fazer mais exercício”, “essa cor de cabelo não é natural”, “estás tão magro”, “tens um corpo robusto”, “estás cada vez mais alto”, “estás mais gordinha”, “quando começas a fazer dieta?”… Os comentários ao corpo alheio chegam a passar por opinião, mas são, na verdade, uma forma de crítica que se identifica como body shaming. O termo ganhou uma nova dimensão com as redes sociais e pode ter consequências negativas para a saúde mental - principalmente entre os mais jovens.
Pode acontecer em qualquer momento, seja dentro da família ou numa conversa entre amigos. Pode ser apenas uma piada repetida várias vezes ou um comentário que de quem “só quer ajudar”. Com as redes sociais, a imagem do corpo perfeito ganhou um novo impacto e as críticas às fotografias partilhadas também se tornaram mais frequentes - mesmo vindas de desconhecidos. Mas afinal, o que é body shaming?
“O body shaming [envergonhar o corpo, em português] é uma agressão através de comentários depreciativos sobre a forma física da pessoa” explica à SIC Notícias Ana Félix, psicóloga na Clínica Saúde Positiva. “Pode acontecer em conversas, diretamente com a pessoa ou via online, e afeta qualquer pessoa, de qualquer idade. Pode até acontecer connosco próprios.”
Este tipo de comentários – mesmo que inconscientemente – pode provocar sentimentos de “vergonha do corpo”, levando o indivíduo a “não se sentir bem na própria pele”.
“Vai depender muito de pessoa para pessoa e de quão bem o indivíduo se sente dentro da própria pele”, explica a psicóloga. Quando a autoestima é mais frágil, estes comentários podem ter um efeito destrutivo, originando uma “avaliação muito negativa” da própria pessoa e podendo levar a uma “preocupação excessiva para trabalhar o corpo”.
Estas questões podem afetar todas as idades. Segundo a Fundação britânica para a Saúde Mental, uma “maior insatisfação com corpo está associada a uma pior qualidade de vida, sofrimento psicológico e risco de comportamentos alimentares não saudáveis ou transtornos alimentares".
Nos jovens, o body shaming ganha uma dimensão bastante relevante. Estudos citados pela mesma fundação concluíram que o corpo e a autoimagem têm um grande peso na autoestima dos adolescentes. Num inquérito realizado em jovens entre os 13 e os 19 anos, 35% dos inquiridos dizem estar preocupados com a autoimagem “muitas vezes” ou “sempre”.
A percentagem aumenta quando se fala de raparigas: 46% das jovens mostraram-se preocupadas com as imagem corporal “muitas vezes” ou “sempre”, comparando com 25% dos rapazes. Este desagrado pelo corpo está “ligado ao risco de problemas comportamentais e de saúde mental”, nomeadamente sintomas depressivos e de ansiedade, sendo também um fator de risco para comportamentos de autoagressão entre jovens com dificuldades emocionais.
“Estudos realizados com jovens mulheres também identificaram uma maior probabilidade de pensamentos suicidas entre as mulheres que relataram comportamentos extremos de controle de peso (por exemplo tomar comprimidos par emagrecer, diuréticos ou laxantes)”, pode ler-se na Fundação britânica de Saúde Mental.
Ana Félix reconhece que “a sociedade tem uma maior tendência para criticar o corpo da mulher”. Os estereótipos ditam que a mulher seja magra e elegante, escondendo os efeitos do envelhecimento, enquanto o homem deverá ser musculado e esbelto. A busca pelo corpo perfeito é uma preocupação entre os adolescentes: segundo um estudo desenvolvido pela Be Real, 36% dos adolescentes britânicos admite que “faria tudo” para parecer bem, enquanto 57% refere estar a considerar uma dieta e 10% diz ter pensado realizar uma cirurgia plástica.
O impacto das críticas e a relação com a comida
O impacto que as críticas e comentários podem ter na saúde mental da pessoa vai “depender da pessoa e de quão bem esta se sente dentro da próprio corpo”, sublinha a psicóloga. Quando o indivíduo, já por si, faz uma avaliação muito negativa do próprio corpo, o body shaming pode levar ao aparecimento de “sentimentos de vergonha”, criando uma “preocupação excessiva em trabalhá-lo” para alcançar a figura ideal.
“É bastante comum as pessoas materializarem a vergonha e a baixa autoestima em determinados comportamentos, alguns deles autolesivos”, prossegue Ana Félix.
Este tipo de comentários pode levar o indivíduo a adotar mudanças, algumas mais extremas que outras. Numa primeira fase, poderá começar por mudar o tipo de roupa usada, optando por peças mais largas para “esconder o corpo”. No entanto, se a pessoa estiver numa situação “frágil” do ponto de vista emocional, poderá seguir por caminhos “extremos” – tais como a prática de exercício físico exagerado, optar por dietas restritivas ou outras formas de emagrecer.
“O body shaming vai ter influência nos hábitos e comportamentos alimentares, na escolha de dietas rápidas e que prometam resultados a curto prazo”, afirma Tiago Soares Pina, nutricionista no Centro Hospitalar Universitário de Coimbra.
O nutricionista reconhece que a preocupação com a forma física é referida pelos pacientes em consulta e sublinha que o estereótipo afeta tanto homens como mulheres. Alerta ainda que os sucessivos comentários ao aspeto físico podem levar a pessoa a entrar num caminho de obsessão em busca da imagem ideal. E o primeiro corte é na comida.
“As pessoas focam-se na contagem de calorias e tornam-se obcecadas, fazem restrições de hidratos de carbono e cortam importantes grupos alimentares que são fundamentais para o nosso organismo”, explica Tiago Soares Pina. “Se a dieta não for restritiva e não tiver resultados a curto prazo, as pessoas desacreditam-se do processo.”
Estas dietas “da moda” – que muitas vezes são promovidas através das redes sociais – podem apresentar um “sucesso rápido”, mas tornam-se num “insucesso a longo prazo”. Além disso, estas restrições agressivas podem provocar défice de múltiplos nutrientes, como vitaminas, minerais e fibras, que podem levar a sintomas de “fadiga psicológica, cansaço físico precoce, perda de massa muscular, disbiose intestinal” ou até a um “sistema imunitário deficiente”.
Tiago Soares Pina sublinha que a sociedade tem uma baixa literacia nutricional e, mesmo sem saber, toda a gente gosta de dar a opinião sobre o que o outro come.
“Em cada português existe um treinador de bancada e um nutricionista. Qualquer pessoa faz comentários sobre o que devemos ou não comer”, afirma. “O que eu costumo dizer aos meus utentes na consulta é que só o nutricionista deve fazer a gestão da alimentação e nutrição da sua dieta. Os treinadores de bancada deixam de existir, os comentários alheios são para ignorar porque o ruído prejudica o processo”.
Como proteger-se dos comentários de body shaming
As críticas ao corpo podem vir dos mais diversos grupos – da família, dos amigos, dos colegas de trabalho ou de estranhos, por exemplo, através de comentários nas redes sociais. Podem ser referidos em jeito de piada, mascarados em conselho ou até numa tentativa propositada de insultar. Para Ana Félix, as comparações e os comentários ao corpo são “quase culturais” e “estão muito enraizados” na sociedade.
Porém, quando os comentários começam a afetar a autoestima da pessoa, é importante procurar estratégias para se proteger. Uma deles é “afastar-se” das críticas – seja pessoalmente, seja através das redes sociais.
“Se a pessoa não sabe lidar com estes comentários ou se está a sentir-se afetada por eles, deve afastar-se da situação”, afirma Ana Félix. “Se tenho alguém nas redes sociais com quem estou constantemente a comparar-me, o melhor é deixar de seguir a pessoa.”
Além disso, a psicóloga sublinha a importância de “questionar os ideais de beleza”, trabalhar na “apreciação e valorização do corpo”, investir “no autocuidado fazendo algo que a pessoa gosta e que lhe faça bem”. No caso das crianças é também importante que a família dê apoio e elogie.
Nos últimos anos, a pressão estética – incluindo o body shaming ou a gordofobia – tem vindo a ser mais falada, no sentido de alterar o paradigma do corpo perfeito. No entanto, a psicóloga lembra que ainda “não estamos onde gostaríamos de estar” e há “um caminho muito longo para percorrer”.