O Serviço Nacional de Saúde tem cerca de mil psicólogos, mas as necessidades do país exigem, pelo menos, o dobro. Uma falta de profissionais que dificulta o acesso a consultas de Psicologia através do Estado. Daí a importância de projetos como o da Junta de Freguesia de S. Domingos de Rana, no concelho de Cascais. A junta tem um gabinete de Psicologia que faz consultas a preços sociais e dá apoio aos idosos e crianças da freguesia.
“UMA COISA INEXPLICÁVEL, D. ANA!”
Se alguma vez tinha tido contacto com um psicólogo, é a pergunta, e Judite Raposo diz logo que não. Aconselharia? Perto de completar 72 anos de idade, responde com o coração: “O psicólogo? Aconselho a toda a gente que tenha problemas e que possa… aconselho. Para mim, ele é o meu padre, o meu confessor.” E agora, que enfrenta problemas graves de saúde, mais ainda: “Tem-me dado uma mais-valia, uma força, uma coragem, uma coisa inexplicável, D. Ana.” Esta D. Ana é a jornalista da SIC com quem Judite Raposo conversa no centro de dia. Com ela, várias outras senhoras partilham uma tarde.
AS EMOÇÕES VÃO À ESCOLA
De manhã, numa aula do 4.º ano, no contexto do projeto “Psicologia Clínica na Escola”, as crianças desenharam emoções. Tarefa assumida por todos os alunos com empenho. Traços vão ganhando forma e cor no papel. Há o desenho de uma criança que enche a página, braços bem para cima, quase a chegar ao céu. Simão Pires diz que desenhou os vários tipos de felicidade que traz para a escola: “Por exemplo, este é quando marco golo; este aqui é quando venho apaixonado, porque eu gosto de estudar e saber matéria nova para o futuro”; – foi o que Simão disse, tal e qual – e este é quando faço caretas…”. Aos 10 anos, Afonso Henriques fala da ansiedade: “Quando eu estou muito nervoso com uma coisa, começo a chorar, mas depois respiro fundo e conto até 10 na cabeça.” Na turma, qualquer um consegue explicar o que é um psicólogo: “É uma pessoa que ajuda a arrumar as ideias” esclarece rapidamente Maria Mendes.
DIGA LÁ, FREGUÊS!
A palavra raramente se usa neste contexto, mas a verdade é que, numa freguesia, há fregueses: “O que acontece muitas vezes é perceber porque é que aquela criança não aprende, porque é que está triste, as dificuldades dos pais e dos idosos, ou, em termos secundários, as dificuldades do freguês”, diz Ricardo Gameiro Mendes, o coordenador do Gabinete de Psicologia.
A equipa de 11 pessoas, coordenador incluído, vai diversificando os projetos. O mais antigo, nas escolas básicas, tem permitido ajudar os professores a identificar os sinais de alerta e, quando é preciso, referenciar alunos para apoio psicológico.
Marta Rosa, professora-coordenadora do 1.º ciclo da Escola Básica de S. Domingos de Rana explica que: “Não só as crianças podem ter muitas dificuldades em lidar com as emoções e exteriorizam-nas de forma descontrolada como há também o oposto: crianças muito sossegadas, muito quietas, muito retraídas, com dificuldades de socialização e essas também nos preocupam”.
Noutro agrupamento de escolas, a professora Vanessa Pereira vai mais longe: “Às vezes, os próprios pais vêm ter connosco e dizem: professora, eu sei que ele aqui está bem mas…. ele, lá em casa, não é assim, ele, lá em casa, sofre, ele, lá em casa, diz que não gosta de nós, não está bem, não é feliz, e na escola não é nada assim.”
UM CONSULTÓRIO A CÉU ABERTO
Professora há mais de vinte anos, Vanessa Pereira sabe como é difícil conseguir apoio de um psicólogo através da escola ou do centro de saúde. No Estado, faltam profissionais. Só para ter uma ideia, dos 25 mil psicólogos existentes no país, apenas mil trabalham nos hospitais e centros de saúde do SNS. A Ordem dos Psicólogos diz que o número deveria ser, pelo menos, o dobro. Esta falta de profissionais é comum às 3 mil freguesias do país mas em S. Domingos de Rana, freguesia do concelho de Cascais, a junta tem um gabinete de psicologia comunitária, a que o coordenador gosta de chamar um “consultório a céu aberto”. O segredo, diz Ricardo Gameiro Mendes, é saber ouvir: “Estamos atentos às faltas que aparecem na freguesia. No fundo, a freguesia vai comunicando as suas dores em determinados contextos e nós temos de ter a escuta e a criatividade para criar momentos de encontro, que podem ser numa escola, podem ser no centro de dia, ou podem ser noutro local. Não somos nós que temos que criar necessidades, estamos à espera que seja a freguesia a comunicar, seja através do executivo seja através da população”.
“NÃO HÁ TELETRABALHO PARA QUEM FAZIA LIMPEZAS”
Num território com cerca de 60 mil habitantes em 20 km2, há que considerar a realidade de milhares de moradores em 14 bairros com rendas sociais. O atual presidente da Junta de Freguesia, Fernando Ferreira Marques, está consciente das necessidades: “Nós não temos teletrabalho para quem fazia limpezas, quem trabalhava numa copa de restaurante que fechou, para quem era empregado de mesa. Há aqui uma quantidade de profissões que, de repente, ficaram muito condicionadas ou desapareceram e que criou um conjunto de situações novas… Além de que estarmos fechados em casa é diferente quando a casa tem 100 ou 200 m2, ou quando a casa tem 30 ou 40 m2, em que uma família grande, que normalmente encontrava-se para dormir e pouco mais e, de repente, as pessoas ficam dias a fio, semanas a fio, fechadas num cubículo com a família toda”. Com o poder político disponível para as propostas da equipa de psicologia comunitária, o caminho vai-se fazendo em várias frentes. Em 2019, nasceu o projeto Saúde, Tempo e Memória, a pensar nos mais idosos.
“MEDO, MEDO, MUITO MEDO”
A mesa está posta, com uma taça cheia de frutas: “abacaxi, um tomate, uma laranja, uma pêra, uma beringela, cenoura, mais um pêro, morango, cereja, estou a fazer mais uma cenoura…” Maria do Carmo Ferreira enfia a agulha na linha e continua a fazer crochet, satisfeita com o trabalho feito ao longo dos dias no CESPA, o Centro Social da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição, na Abóboda. É o retomar da normalidade num centro de dia que esteve fechado mais de um ano por causa da pandemia. À semelhança de outros no país, também aqui os técnicos fizeram o possível para manter o contacto direto com os utentes através de telefonemas e videochamadas. Sempre atentos aos sinais de alerta: “a tristeza, o sentimento de não saber como é que vai ser o dia a seguir, o medo, medo, muito medo sempre, às vezes alguma confusão”, explica Laura Corte-Real, diretora técnica do CESPA.
DEPRESSÃO NÃO É DEMÊNCIA
Embora possa ser confundida com demência, a depressão é uma das doenças mais frequentes acima dos 65 anos. Além das limitações físicas, importa considerar as agruras da vida e a solidão, intensificada e prolongada pela pandemia. Vejamos que coisas costumam preocupar Maria do Céu Sousa da Silva. Do alto dos seus 90 anos, responde “olha, se fosse a falar, tinha muito que falar”, num tom censura pela indiscrição da pergunta, mas acaba por acrescentar: “Só filhos, já morreram três. Mãe, marido, irmão, irmã, agora morreu-me um genro. Muita gente. Só filhos, já lá estão três” – repete – “Os filhos é que enterram a mãe e eu já enterrei três.” Utente do centro de convívio de Vinhais, Clementina da Mota Correia Silva, conta que “Tenho um filho que anda em cadeira de rodas, foi o primeiro filho dos cinco. Depois, foi perder o meu marido, o meu primeiro e único namoro, nunca tive ninguém na minha vida a não ser o meu marido. Claro que foi muito e continua a ser uma dor muito grande mas que eu faço sempre para…” Faltam as palavras para concluir a frase mas é essa vontade de ultrapassar a dor que a faz entrar na sala e cantar no coro às segundas-feiras.
MINHA AMORA NEGRA, MEU AMOR SILVESTRE…
O pé a dar ao compasso da música e uma voz masculina, entoa, com as restantes: “Minha amora negra, meu amor silvestre, toda a gente sabe que um beijo me deste…” Aqui, a rotina das segundas-feiras inclui música e canções de outros tempos. Diz Francisco Pereira Roberto, 75 anos: “É bom porque eu já estou viúvo e para não estar sozinho em casa, que é um bocado mau, e sempre vimos aqui distrair um bocadinho. Já fomos quatro, mas uns morreram, outros desistiram e estou sozinho”. Quando os centros de dia reabriram, depois da pandemia, muitos idosos tinham desaparecido, vítimas da Covid ou de outras doenças associadas. Um processo de luto, difícil também para os funcionários, como faz notar Áurea Lopes, Chefe do Departamento da Terceira Idade da Santa Casa da Misericórdia de Cascais: “Isso ‘buliu’ muito com os funcionários. O não poder ir, o não poder estar…foi complicado.”
QUASE DUAS MIL CONSULTAS A PREÇOS ACESSÍVEIS
Com o foco na freguesia e contrariando a vontade de chegar a mais pessoas, o gabinete de Psicologia da junta aposta num acompanhamento sem pressas, seja com idosos, adultos ou crianças. Os pedidos das instituições e das escolas são tantos que é preciso ponderar bem os casos. É uma opção de trabalho, como explica Ricardo Gameiro Mendes: “É importante perceber que não podemos chegar a todo o lado, no fundo temos de tentar ajudar só algumas pessoas e ter um bocadinho a esperança que essas pessoas, depois, sejam também promotoras de saúde mental, seja nas suas famílias, seja nas suas ruas, seja nos seus locais de trabalho.” O coordenador do Gabinete de Psicologia e o executivo da Junta de Freguesia estão alinhados: “O que eu sei é que não podemos abrandar” – diz Fernando Ferreira Marques, o presidente da Junta. “No ano passado, tivemos 1921 sessões”, acrescenta, referindo-se à Clínica Mente Sã, onde são dadas consultas de Psicologia, psicoterapia e terapia da fala a apenas 18 euros, quando habitualmente rondam os 60 ou 70 euros.
2,2 MILHÕES DE PESSOAS COM MAIS DE 65 ANOS
A equipa da junta de freguesia faz também grupos de reflexão e psicoterapia individuais com os idosos referenciados pelos técnicos de vários centros de convívio da freguesia. Odília da Conceição Chirla explica por gosta das sessões, mesmo sendo apenas uma vez por mês: “Ele faz as coisas assim, quase um tipo de brincadeira, mas nesse tipo dessas brincadeiras, ele vai captar como é que nós estamos, como é que nós nos sentimos e isto agora é o dia melhor que nós temos durante o mês, é esse, o do psicólogo, todos estamos a adorar.” Já Maria da Purificação Barbosa coloca as mãos junto ao coração quando diz: “Para mim, o Dr. Ricardo é um anjo que me caiu do céu… Ajudou-me a sair de um buraco que eu estava que a senhora nem lhe passa pela cabeça.” São apenas alguns testemunhos de idosos que estão a receber apoio psicológico através da junta de freguesia. Quanto ao SNS, Laura Corte-Real diz que: “Se nós, tendo conhecimento que para as crianças não temos resposta, os pais não têm resposta do Sistema Nacional de Saúde, para os idosos seria muito mais complicado com certeza. Desconheço até que haja, no Sistema Nacional de Saúde, psicólogos disponíveis para atuar com a população idosa.”
Em Portugal há 2,2 milhões de pessoas com mais de 65 anos. Nos centros de saúde de todo o país, há apenas 575 psicólogos, para os utentes de todas as idades. O último concurso público, para contratar 40 profissionais, demorou 4 anos. O processo de recrutamento começou em março 2018 e só terminou em… 2022, há cerca de um mês. Em termos de Saúde Mental, é claro que a resposta do Estado deixa muito a desejar. Daí a importância deste Gabinete na Junta de Freguesia de S. Domingos de Rana. Ao procurar responder às necessidades da população, criando novos projectos e adaptando os que já existem, faz-se psicologia comunitária há cerca de 18 anos.
A Reportagem Especial “A Psicologia saiu do consultório” é da autoria de Ana Luísa Galvão e Guilherme Lima, com imagem de Fernando Silva e Luís Bernardino, edição de imagem de Marisabel Neto, grafismo de Marta Coelho e coordenação de Marta Brito dos Reis.