Adelaide Cruz, 52 anos, e a quem foi diagnosticada uma esquizofrenia na adolescência, não guarda boas memórias dos internamentos psiquiátricos a que foi submetida em períodos de agravamento da doença. “O ambiente era difícil. Não podia usar as minhas próprias roupas, não podia ir sozinha ao jardim ou caminhar ao ar livre - havia sempre alguém a vigiar-me."
Os contactos com a família também eram bastante dificultados. "Os profissionais tratavam-me com um certo preconceito e às vezes eram rudes. O sistema psiquiátrico português ainda é um pouco opressor", conta no mais recente episódio do podcast “Que Voz é Esta?”, o último desta temporada.
Na base de muitas destas atitudes e situações está o estigma, lamenta Adelaide Cruz, considerando que estes preconceitos são um dos principais problemas que enfrentam as pessoas com doença mental. É por causa desse estigma, que ainda persiste, que pediu para não ser fotografada durante a participação neste episódio.
"Somos vistos de maneira diferente pela sociedade e temos dificuldades em ser plenamente integrados na comunidade. Aceitam-nos em estágios promovidos pelas associações que dão apoio nesta área, mas depois somos afastados. E não temos acesso a uma habitação que nos permita ser autónomos e independentes", exemplifica.
Carolina Cabaços, psiquiatra e investigadora do Instituto de Psicologia Médica da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, tem-se dedicado à investigação sobre o estigma, tendo participado recentemente num estudo europeu que avaliou esta realidade entre psiquiatras e pedopsiquiatras. A sua tese de doutoramento, ainda em curso, é sobre o estigma na população em geral e o impacto que tem sobre as pessoas com doença mental.
Segundo a investigação que tem vindo a realizar, uma das maiores causas do estigma tem a ver com a ideia de que as pessoas com doença mental "são ou podem tornar-se violentas".
Já nos profissionais de saúde mental, cujos níveis de estigma “não são substancialmente inferiores” aos da população em geral, o preconceito tem, sobretudo, a ver com a ideia de que estas doenças são para toda a vida. “Há uma certa ideia de cronicidade, de falta de esperança no futuro. Ainda acreditam que as pessoas que têm diante de si nunca vão recuperar”, explica a investigadora.
A ideia de que a doença mental não tem recuperação pode estar relacionada com a falta de meios com que se confrontam frequentemente os profissionais de saúde mental. "Não nos são dadas ferramentas para trabalhar no sentido de garantir uma recuperação completa. Temos fármacos suficientes para lidar com os sintomas, mas não temos meios para promover e acompanhar essa recuperação. Se ainda não há maneira de empregar estas pessoas e garantir-lhes um futuro do ponto de vista académico, profissional e pessoal, como é que vamos acreditar na sua recuperação? Isto é muito frustrante e pode contribuir para a tal falta de esperança", alerta.
As consequências “terríveis” do mito da incurabilidade
O psiquiatra e antigo diretor nacional de Saúde Mental, José Miguel Caldas de Almeida, que é consultor científico do podcast “Que Voz é Esta?”, lembra que este "mito da incurabilidade teve consequências terríveis, porque autorizou a que se pusessem pessoas a vida inteira dentro de instituições, com restrições muito grandes à sua liberdade e com uso de coerção”.
Mas, apesar de ainda persistir essa ideia, hoje sabe-se que a recuperação é possível. "Mesmo casos clinicamente muito graves, se encontrarem um ambiente favorável e tiverem apoios, podem recuperar capacidades, desenvolver novas competências e encontrar um caminho para uma vida que tenha significado para elas”, frisa.
Mesmo assim, Caldas de Almeida considera que “o estigma nunca irá acabar”, já que “os seres humanos vão sempre ter tendência para excluir subgrupos e arranjar bodes expiatórios”, até porque, para se acharem melhores, “têm que arranjar outros que são horríveis”.
“Todos nós temos um forte estigma em relação à doença mental. Os dois grandes pavores dos seres humanos são a morte e a loucura. São as duas coisas que nos assustam mais. E todas as pessoas têm receio, mesmo que não se apercebam disso, de estar com outras que tenham experiências de que elas próprias têm muito medo”, explica.
É esse medo que ajuda a explicar por que razão o estigma não tem diminuído substancialmente ao longo das últimas duas décadas, apesar de o conhecimento sobre saúde mental ter aumentado muito. A literacia é "extremamente importante, mas não é suficiente para chegarmos a um ponto em que o estigma já não afeta de forma significativa a vida destas pessoas", lamenta a investigadora Carolina Cabaços.
Tal como têm demonstrado vários estudos, a solução é outra: "Contactar com pessoas com doença mental, conhecer as suas histórias e percursos de vida, e dar-lhes voz, acaba por ser o mais relevante", salienta a psiquiatra. Caldas de Almeida corrobora: “É a única coisa que diminui o estigma.”
“Não somos rótulos”
Com base na investigação que tem realizado, Carolina Cabaços explica que o estigma tem um grande impacto sobre as pessoas com perturbações psiquiátricas, atrasando a procura de ajuda, o que depois terá implicações na evolução da doença. A autoestima dos doentes também fica afetada, influenciando a forma como se relacionam com o mundo. “O estigma vincula a pessoa a um atributo profundamente depreciativo, que a reduz aos olhos dos outros, mas também aos seus próprios olhos. A pessoa passa a ter apenas uma característica - é a deprimida ou a bipolar - transformando-se nessa característica. É despersonalizada e desumanizada.”
Adelaide Cruz integra a Plataforma Nacional de Pessoas com Experiência de Doença Mental, focada na promoção e defesa dos direitos destas pessoas, como o direito a não receber tratamentos forçados e invasivos; a integração plena na comunidade, habitação, educação, e outros direitos relacionados com o casamento, parentalidade, empréstimos bancários, etc.
"Não temos direito a nada disto. A nossa integração na comunidade é uma luta constante, pela qual temos de nos bater todos os dias, todas as semanas, todos os meses, todos os anos", diz Adelaide Cruz, deixando recados. "Nós não somos rótulos. Somos pessoas com experiência de doença mental. Temos um conhecimento acrescido do que é a doença mental, mas temos sentimentos, capacidades e competências como qualquer outra pessoa."
Foi com esta mensagem que terminou esta temporada do podcast “Que Voz é Esta?” que, ao longo do último ano, em mais de 50 episódios, procurou precisamente dar voz a pessoas com experiência de doença mental para desconstruir mitos e combater o estigma.
“Que voz é esta?” é o nome do podcast do Expresso dedicado à saúde mental. Todas as semanas, as jornalistas Joana Pereira Bastos e Helena Bento dão voz a quem vive com ansiedade, depressão, fobia ou outros problemas de saúde mental, ouvindo igualmente os mais reputados especialistas nestas áreas. Sem estigma nem rodeios, fala-se de doenças e sintomas, tratamentos e terapias, mas também de prevenção e das melhores estratégias para promover o bem-estar psicológico. O podcast conta com o apoio científico de José Miguel Caldas de Almeida, psiquiatra e ex-coordenador nacional para a saúde mental.