Vais apresentar o espetáculo “King Cordes”. O que há de diferente nesta “dinastia”?
Talvez eu agora já não seja um cobarde de dizer que o papel do humorista não interessa, ou não tem importância. Se calhar, antigamente, convencia-me mais disso para defesa. E isso é uma cobardia. Agora estou completamente confortável com a importância do papel de um “stand-up comedian”.
Qual é que é essa importância?
É diversa. Atinge muitas áreas, é muito grande. Eu fui ao programa do [Rui] Unas. Ele tem aquelas fases de não acreditar tanto nele, de encarar o futuro de forma não tão otimista. Adoro o Unas e não gosto de o ver assim. Estava a animá-lo e a relembrá-lo da sua importância e depois, passado um dia ou dois, recebi duas ou três mensagens de pessoas, até pelas circunstâncias que envolveram a morte do Ricardo Vilão. Não é fácil falar de suicídio sem dizer a palavra. Mas são mensagens que eu já recebi várias vezes, de pessoas que passam por processos difíceis e encontram no humor uma espécie de salvação. Fugir disso é uma cobardia imensa. Porque é fácil fugir, como eu já fugi quando comecei a fazer autógrafos e fotografias no final dos espetáculos e as pessoas diziam-me coisas impactantes.
Quando dizes "fugir disso" é demitires-te desse papel?
É achares que não, que és só um palhacinho. E não é verdade. O que não impede que depois sejas um palhacinho, como acabei de mostrar em “Wrong Comedy”. Essas mensagens são o melhor de tudo.
Mas essas mensagens são o impacto que não controlas e acabas por ter. Claro, quem é que faz piadas e imagina que alguém se deixa de suicidar por isso? O que é facto é que isso acontece. Como eu já sei há tantos anos e muitos humoristas sabem porque recebem essas mensagens. Eu percebo que o humorista não queira esse lugar pomposo, percebo que se fuja a isso de um ponto de vista quase moral. Mas é mais feio fugir, na minha opinião.
Mesmo com o Jimmy Carr, que é uma máquina de piadas…
Já viste, que é só “one-liners” e mesmo assim há pessoas que se deixam de matar por causa dele. Porque apanharam uma porcaria de um clipe de dez minutos e depois foram ver mais e mais. E depois foram ver outros humoristas com certeza, e depois viram a vida de outra maneira. Isto não é deixar de se matar por causa deste gajo. Às vezes é só um clique que as pessoas precisam. Especialmente no meu humor e no dele há aqui muito o efeito de alívio. Não é à toa que as pessoas que nunca foram praticantes de humor negro ou apreciadoras, quando passam por momentos trágicos o primeiro recurso que têm é ir ao humor negro, e às vezes até fazem boas piadas. Porque é um alívio.
Estás a pensar em algum caso?
Um amigo meu teve cancro na traqueia e o grupo de amigos dele era só piadas de humor negro exceto eu.
Gostas de ter o controlo sobre o teu legado?
Legado rejeito, nunca penso nisso. Faço o que acho correto. Eu acho que faço uma descrição honesta do que vou sentindo. Não gosto de reagir a quente. Acho que o trabalho do humorista normalmente é sempre reativo, na maior parte dos formatos. Gosto mais de ser antecipador. Tentar ganhar tempo a ver a big picture. Há muito mais clareza. Estamos numa sociedade de tweets e reações instantâneas a coisas que nem fazemos ideia se são verdade. Isso permite-me também olhar a cinco ou dez anos. Olhar mais para fora no mundo e encontrar padrões. O trabalho do humorista é encontrar padrões. Acho um pouco estranho que nos últimos anos o espírito crítico se tenha ausentado um bocado do humor.
Como assim?
Durante a pandemia tiveste humoristas a usar o termo “chalupas”. Tiveste humoristas, que identificam padrões, a denegrir pessoas que estavam a identificar padrões. Tiveste uma retirada dos humoristas do mundo intelectual. Ninguém questionou nada durante os últimos anos. Não é normal os humoristas estarem do lado do governo. Nunca foi assim. Os grandes humoristas que nós admiramos hoje em dia - Bill Hicks, George Carlin - caracterizavam-se pelo quê? Identificar padrões, ver coisas que não estão a bater certo e estar contra o governo que estava a fazer certo tipo de coisas. Na altura era a guerra. Tiveste uma coisa estranhíssima, pela primeira vez no mundo: Com medidas anti-humanitárias, humoristas do lado da autoridade. É estranho e preocupante.
Estás a falar do tempo da pandemia, certo? De vacinas, de controlo.
Não só. Estou a falar de uma série de medidas, não só relacionadas com a pandemia. Uma série de medidas que vêm aí, e são todas autoritárias ou anti-liberdade. E vejo que os humoristas se retiraram do seu espírito crítico. Claro que tu vês espírito crítico aqui e ali, em podcasts, em humoristas que são cronistas. Mas a base geral é não questionar. E isso da nossa classe acho que é muito estranho.
Quem era o Ricardo Vilão e porque é que fazem esta homenagem?
Era quase impossível não assinalarmos quem é que era o Vilão e porque é que era tão importante para nós e para a história do stand-up português. Vai ser tão difícil fazer isto mais logo. Já não ficava nervoso há seis anos para um espetáculo. Quero que corra bem. E não queremos emocionar-nos também. Não é que haja mal, não tenho problemas nenhuns em chorar. É ótimo chorar, todas as pessoas deviam chorar de vez em quando. Nós ainda por cima estávamos a fazer o ensaio, e o [Luís] Franco-Bastos tem a fala inicial para as pessoas e já lhe estava a tremer a voz. Ele disse: “Se eu já estou aqui assim e estamos no ensaio só os três, com mil pessoas como é que vai ser?” E a minha resposta encorajadora foi “Ainda bem que não falo quando entro”.
Como é que era o Ricardo Vilão como comediante?
Vou tentar ser honesto e justo, para não parecer que caímos todos naquele clichê habitual das pessoas que partiram. Ele passou-nos os aspetos de motivação e de loucura. Fazermos uma tour com 43 datas, que era de loucos, e a iniciativa foi dele. Ele era o nosso produtor, com outra voz ao telefone, o Fernando Afonso. Mas a motivação que ele nos dava, sempre a convidar pessoas importantes da imprensa que nós estragávamos a seguir. Tinha uma visão de chamar pessoas para fazermos entrevistas, para crescermos. Marcar salas maiores, fazer autógrafos e fotos no final dos espetáculos. Nós achávamos piroso Éramos mesmo muito amigos. Havia sempre uma fase que o Vilão dizia, quando era ele a fechar os espetáculos: “Pode haver humoristas melhor que nós, pode haver amigos melhor que nós. Não há humoristas mais amigos do que nós”. Houve uma necessidade de sermos brutalmente honestos uns com os outros, sobre quem éramos, que problemas e vantagens trazíamos ao grupo, sobre a noite em si, sobre quem era o Vilão, que importância teve e quais eram as falhas também do Vilão. Vamos analisar tudo com honestidade. Já que o exercício foi tão doloroso é melhor partilhar.
Gustavo Carvalho faz perguntas sobre comédia. O convidado responde. Sorriem… é humor à primeira vista. Oiça aqui mais episódios: