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O reflexo da devastação em Vouzela

Como é que se começa a escrever sobre uma região que nos viu nascer e crescer para a fotografia de natureza e vida selvagem e que agora ardeu numa extensão superior a 70%? Professor e fotógrafo freelance, Rúben Neves voltou a Vouzela, terra afetada pelos incêndios de 15 de outubro. E aqui responde à pergunta que ele próprio coloca. Em texto e fotos.

Rúben Neves

Rúben Neves

Como é que se começa a escrever sobre uma região que nos viu nascer e crescer para a fotografia de natureza e vida selvagem e que agora ardeu numa extensão superior a 70%?

Devemos dar respostas, pistas e significados ao que é desconhecido ou pouco perceptível ao nosso público. Certo! Mas num exercício deste género é também legítimo que quem escreve ou quem fotografa possa partilhar com o leitor aquilo que “vai na alma” de quem para ele escreve. De quem para ele e por ele (leitor) fotografa.

As imagens falarão por si, deduzimos sempre, mas terão sempre histórias por contar. Umas dificilmente serão (re)contadas mas poderão ter sido imortalizadas através de imagens que foram sendo feitas ao longo dos anos. Outras, poderão e deverão ser contadas para que o leitor perceba a dimensão do que aconteceu. Não de uma forma “distanciada”, entenda-se. Até porque nesta história, isso não é possível. E talvez nem seja desejável.

Nesta história, ardeu o lugar onde aprendi a dar valor ao património natural, onde comecei a desvendar os segredos da natureza e onde percebi a importância da biodiversidade. Onde o significado da terra assumia, para as suas gentes, contornos inimagináveis se um dia se perdesse. Onde a vida é levada ao ritmo que a natureza permite e onde a população estranha as pedras que pisa à mínima alteração de terreno.

Até nisso a madrugada de 15 de Outubro foi decisiva. As passagens, os cheiros e os caminhos deixaram de o ser. São agora outra coisa. São mantos pretos, pulverizados de castanho e zonas cinzentas sem luz, com historias apagadas. Os cenários estão agora ao nível de qualquer produção 3D. Mas são reais.

O fogo chegou sem avisar, antecipou-se a tudo e a todos numa sequência de “bolas de fogo” e com um “assobio” sem igual. Pareciam tufões, dizia o único habitante que encontrei no cimo da Serra do Caramulo. Alguém que nem estranhou a presença de três “maduros” a tentar decifrar a serra. Um deles com a máquina em punho. “Andam a fotografar as desgraças”, perguntava.

Não resistiu a parar a moto que conduzia para dar o seu testemunho. Conhecia o João Cosme, o meu amigo e fiel parceiro de fotografia que me guiou naqueles dias depois dos incêndios. Ficaram os dois à conversa mais o meu amigo Modesto Viegas enquanto eu tentava encontrar a melhor forma ou o lado mais decisivo para tentar passar a minha mensagem. Aparentemente qualquer lado servia. Menos o asfalto, pensava eu. Mas também esse, aqui e ali, tinha as margens “manchadas” de negro. Mas segui naquela estrada que mais parecia o caminho para as trevas.

Os meus companheiros continuaram a conversa e quando conseguia, tentando não atrapalhar o discurso, chegava-me mais perto para poder ter a certeza do que ouvia. Os relatos da velocidade do vento, das cores, do encarnado que se agigantava faziam perceber que a memória não vai deixar apagar aqueles momentos da cabeça do já não tão solitário “motard”. Tinha-se aventurado pela serra naquele dia, a baixa velocidade tendo apenas como companheira de paisagem a sua moto antiga, a de todos os dias.

Precisava de falar. Precisam todos. São homens e mulheres que presenciaram o maior terror das suas vidas. E até o meu sentimento era novo. Um misto de revolta com uma angústia diferente de qualquer outra e que fazia demorar a clarividência ou a sensação de reviravolta (necessariamente) imediata.

Um silêncio revelador

Um estranho e silencioso vazio apoderou-se dos sentidos quando atravessámos a serra que nos acolheu vezes sem conta para a registarmos. Não reconhecíamos, agora, toda biodiversidade que nos apaixonou. Entrar no “meu” bosque foi o expoente máximo de um novo misto de sensações. Descer a penoita e não proferir ou ouvir uma palavra nos minutos que se seguiram foi um verdadeiro fenómeno. Único e revelador.

Três fotógrafos que tinham a conversa e a boa disposição como denominador comum enfrentavam agora, da forma mais cruel possível, a devastação de uma região que outrora florescia vívida nesta altura do ano. O carro teimava em descer devagar, devagarinho, como se procurasse o Outono que teimava em não aparecer. Ouviam-se os suspiros “silenciosos” e decifravam-se os pensamentos alheios.

As palavras fizeram-se ouvir, quase 15 minutos depois, quando o João Cosme, o filho da terra e fotógrafo profissional que nos guia desde sempre, desabafou: “fogo… que desgraça”, e assim fomos até Ventosa. Eram os primeiros dias do resto de Vouzela.

As respostas necessárias

A força de um povo, creio, poderá medir-se pela sua solidariedade. Em Vouzela encontrei gente de todo o país, pronta a ajudar. Gente que ali chegou e permaneceu a ajudar, a dar o seu tempo e a perpetuar a sua generosidade.

Nos diversos pavilhões cedidos pelo município fazia-se a escolha e a seleção necessária para depois entregar a quem mais precisava. Dos sacos que chegavam a um ritmo alucinante passava-se à triagem natural, depois à divisão por idades e género, a tamanhos e cores. Uma autêntica fábrica de prestação de primeiras necessidades. Desde roupa a brinquedos, passando por mantas, frigoríficos e artigos de higiene, tudo chegou a Vouzela.

Todas as pessoas, dos 18 aos 80 anos estavam ali com uma função. Escolhiam, selecionavam, dobravam e empacotavam para poder voltar a seguir caminho.

Em poucos dias chegou-se ao limite do que era necessário. Rapidamente se afinou a estratégia dos pedidos à comunidade. A comida que agora está a chegar é para os animais que procuram, desesperadamente, uma fonte de energia.

Moradores, vereadores, presidente, todos juntos formaram um conjunto de voluntários que, sem horários a limitar as suas ações, procuram ainda dar resposta a todas as necessidades que vão sendo identificadas.

Um novo rumo procura Vouzela, três semanas depois do maior incêndio que afectou a região e que ainda deixa, ao passar pela serra, sentir o cheiro e ver o fumegar da terra como se tivesse sido ontem.

Nota do autor: um fotógrafo de natureza e vida selvagem apresenta, quase sempre, uma tendência para os cenários com cor e com vida. Será compreensível o seu afastamento de registos com pouca “beleza” ou até de cenários que estarão longe do “expectável” para um wallpaper de computador. Ainda assim, noticiar acontecimentos e alertar para situações justificam a entrega a certas causas menos comuns mas que fazem parte da vida de um profissional de comunicação cuja veia jornalística está sempre presente.

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