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Os "pontos quentes" dos Direitos Humanos em 2022, segundo a Amnistia

A forte repressão da dissidência, a degradação dos direitos das mulheres e a duplicidade de critérios perante as diferentes crises que abalam o mundo são alguns dos alertas lançados no relatório anual da Amnistia Internacional hoje divulgado.

Manifestação da Amnistia Internacional contra a pena de morte.
Andrew Medichini

Lusa

SIC Notícias

A forte repressão da dissidência, a degradação dos direitos das mulheres e a duplicidade de critérios perante as diferentes crises que abalam o mundo são alguns dos alertas lançados no Relatório da Amnistia Internacional (AI) 2022/23 divulgado hoje

No documento a organização não-governamental (ONG) de defesa dos direitos humanos apela à criação de um novo sistema internacional com normas que sejam aplicadas da mesma forma a todos os infratores, já que, atualmente, os critérios são muito diferentes.

Os "pontos quentes" ao nível dos direitos humanos que a Amnistia Internacional considera terem sido especialmente preocupantes no ano passado:

Dois pesos e duas medidas em todo o mundo em matéria de direitos humanos


Segundo a Amnistia Internacional (AI), a invasão russa da Ucrânia desencadeou uma das piores emergências humanitárias e de direitos humanos na história recente da Europa.

O conflito provocou uma onda migratória, denúncias de crimes de guerra, insegurança energética e alimentar a nível global e gerou uma ameaça iminente da possibilidade de uma guerra nuclear.

A resposta do Ocidente foi rápida, através da imposição de sanções económicas a Moscovo e envio de ajuda militar para Kiev, enquanto o Tribunal Penal Internacional abriu uma investigação sobre crimes de guerra e a Assembleia-Geral da Nações Unidas condenou a invasão da Rússia como um ato de agressão.

No entanto, lamenta a AI, a abordagem perante a guerra na Europa contrastou fortemente com as "deploráveis reações" a outros conflitos, como o da Etiópia ou o de Myanmar (antiga Birmânia).

Por outro lado, apesar de 2022 ter sido um dos anos mais mortíferos para os palestinianos desde que a ONU começou a registar baixas, de forma sistemática, em 2006, os Governos ocidentais não exigiram o fim do sistema de 'apartheid' imposto por Israel, tendo até atacado aqueles que o denunciavam.

A Amnistia denuncia ainda a duplicidade de critérios dos Estados Unidos da América (EUA), que se tornaram um dos grandes críticos das violações de direitos humanos na Ucrânia pelas forças russas e receberam milhares de refugiados ucranianos, mas que, "ao abrigo de políticas e práticas racistas", expulsaram do seu território mais de 25.000 haitianos entre setembro de 2021 e maio de 2022, submetendo muitos a tortura e maus-tratos.

As críticas da ONG estendem-se também aos Estados-membros da União Europeia (UE), que abriram as suas fronteiras aos ucranianos que fugiam da agressão russa, demonstrando que eram totalmente capazes de receber um grande número de pessoas em busca de segurança, mas mantiveram as portas fechadas aos migrantes que fugiram das guerras e da repressão na Síria, no Afeganistão e na Líbia.

Na opinião da AI, a duplicidade de critérios do Ocidente "encorajou países como a China, e permitiu também que o Egito e a Arábia Saudita contornassem, ignorassem e desviassem as atenções do seu repressivo historial em matéria de direitos humanos".

Apesar das graves violações de direitos humanos da China contra os uigures e outras minorias muçulmanas -- que constituem crimes contra a Humanidade -, "a China escapou à condenação internacional da Assembleia-Geral, Conselho de Segurança e Conselho de Direitos Humanos da ONU", denuncia igualmente a Amnistia.

Forte repressão da dissidência


No ano de 2022 foram registados vários casos de perseguição a opositores dos regimes, como aconteceu na Rússia, onde vários dissidentes foram levados a tribunal e muitos meios de comunicação social foram encerrados só por fazerem referência à guerra na Ucrânia, avança a AI no seu relatório.

Jornalistas foram também presos em países como o Afeganistão, a Etiópia, Myanmar ou Bielorrússia, assim como na Austrália, Índia e Indonésia.

No Irão, as autoridades responderam às manifestações generalizadas contra décadas de repressão com "força ilegal e recurso a munições reais, granadas metálicas, gás lacrimogéneo e agressões", matando centenas de pessoas, incluindo dezenas de crianças.

No Peru, pelo menos três pessoas morreram no primeiro semestre, na sequência de intervenções da polícia durante protestos e, nas últimas semanas do ano, outras 22 foram mortas em manifestações no âmbito da crise política que se seguiu à deposição do ex-Presidente Pedro Castillo.

Noutros casos, a repressão foi feita de forma mais subtil, como aconteceu no Sri Lanka, que recorreu aos poderes adotados em período de emergência pela pandemia de covid-19 para reduzir o número de manifestações generalizadas contra o agravamento da crise económica.

Em resposta às crescentes ameaças ao direito à manifestação pacífica, a Amnistia Internacional lançou uma campanha global pelo direito fundamental à liberdade de reunião pacífica e apelou à adoção de um Tratado de Comércio Livre de Tortura.

Desrespeito pelos direitos das mulheres


O ano passado teve um impacto acentuado nos direitos das mulheres, alerta a Amnistia Internacional.

O Supremo Tribunal dos Estados Unidos revogou uma garantia constitucional antiga relativa ao direito ao aborto, colocando em causa outros direitos humanos, como o direito à vida, à saúde, à privacidade, à segurança e à não-discriminação de milhões de mulheres, raparigas e pessoas que podem engravidar.

No final do ano, vários estados norte-americanos tinham aprovado leis para proibir ou restringir o acesso ao aborto seguro.

Também nos Estados Unidos, as mulheres indígenas continuaram, em 2022, a enfrentar "níveis desproporcionadamente elevados de violações" e outras formas de violência sexual.

Na Polónia, acrescenta a organização, várias ativistas foram processadas por ajudar mulheres a obterem pílulas abortivas

No Paquistão, foram relatados vários assassinatos de mulheres por membros das suas famílias sem que o parlamento tenha adotado qualquer legislação sobre violência doméstica, embora a questão esteja pendente desde 2021.

Também na Índia, a violência contra as mulheres das comunidades Dalit e Adivasi, tradicionalmente alvo de crimes de ódio, prevaleceu impune.

No Afeganistão, onde os direitos das mulheres e raparigas já estão em queda abrupta desde 2021, houve uma deterioração significativa, tendo-lhes sido vedado o acesso a educação, ao trabalho e a espaços públicos.

No Irão, a chamada 'polícia de moralidade' prendeu violentamente uma jovem curda, chamada Mahsa Amini, por, alegadamente, não estar a usar corretamente o véu islâmico ('hijab'). Dias mais tarde, Mahsa Amini morreu sob custódia policial devido a alegados atos de tortura, o que desencadeou manifestações por todo o país nas quais foram feridas, detidas e mortas mais mulheres e raparigas.

Ação global insuficiente contra as ameaças à Humanidade


De acordo com a AI, as alterações climáticas, os conflitos e os impactos económicos - causados em parte pela invasão russa à Ucrânia -- verificados no ano passado agravaram os riscos para os direitos humanos.

No Afeganistão, a crise económica faz com que 97% da população tenha passado a viver em condições de pobreza.

No Haiti, a crise política e humanitária, exacerbada pela violência generalizada de gangues, deixou mais de 40% da população em insegurança alimentar aguda.

O aquecimento global do planeta e as suas consequências na meteorologia provocou fome e propagação de doenças em vários países no sul da Ásia e na África subsaariana, como o Paquistão e a Nigéria, onde as inundações tiveram um impacto catastrófico matando centenas de pessoas.

Mesmo face a este contexto, não houve evolução em relação à dependência dos combustíveis fósseis, a principal ameaça à vida tal como a conhecemos, aponta a ONG, considerando que "este fracasso coletivo" mostra a "fraqueza dos atuais sistemas multilaterais".

Por isso, este ano, a organização pede insistentemente que sejam reforçados as instituições e sistemas internacionais que se destinam a proteger os direitos humanos, nomeadamente através do financiamento de mecanismos da ONU que visem a responsabilização e investigação de casos.

A AI pede ainda uma reforma do principal órgão decisório da ONU, o Conselho de Segurança, para dar voz aos países e situações que têm sido tendencialmente ignorados, sobretudo os do hemisfério sul.

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