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Fenómenos Extremos? A Natureza pulsa com arritmias: Não é um relógio suíço

Uma vez mais, a ocorrência de “fenómenos extremos” está na ordem do dia. Invocados nos mais variados contextos, a dada altura surge a questão fundamental: o que são afinal “fenómenos extremos”? Na nossa conversa de hoje, convido-vos a um breve olhar sobre os mesmos, da sobriedade da Ciência fundamental, ao fervilhar do teatro de operações. Onde tudo acontece. E onde realmente se pode fazer a diferença.
Paco Santamaria/ EPA

Rui Pita Perdigão

O que são afinal “fenómenos extremos”?

Fundamentalmente, são ocorrências cujas características dinâmicas se desviam vincadamente do funcionamento mais habitual de um sistema. Mas que todavia dele fazem parte integrante. Tecnicamente, em geometria da informação aparecem como desvios transientes relativamente ao “atractor” do sistema. O que em termos estatísticos se reflete em posições distantes dos centros de massa modais ou regimentais de uma distribuição de probabilidade. É de notar a relatividade de tal condição, porquanto ser extremo depende do que suceda ao estado de referência.

Cumpre todavia notar que tal não significa que sejam aberrações nefastas, porquanto a natureza, como tudo na vida, não se faz simplesmente de hábitos, de médias, de padrões fofinhos. Por exemplo, a chamada distribuição Normal, tão importante na estatística tradicional, não se aplica ao que de mais interessante e marcante acontece na Natureza. As médias não são necessariamente mais prevalentes do que os extremos, e estes não são anómalos como é erradamente assumido por quem levianamente aplica tais estatísticas às dinâmicas naturais.

Em sistemas oscilantes e tantos outros de estatística não-normal, os eventos extremos são naturalmente muito mais prevalentes e persistentes do que o simplismo da distribuição normal faria antever. Os fenómenos extremos não são necessariamente esporádicos e muito menos erráticos. As caudas das distribuições naturais estão repletas de “lombas”, de “clusters”, focos de não-linearidade que refletem períodos em que os extremos são mais intensos e persistentes, por oposição a outros períodos em que os extremos são mais dissimulados e intermitentes.

Por exemplo, em simples sistemas osciladores harmónicos como ondas ou pêndulos, os regimes de maior densidade, isto é, onde há maior concentração de ocorrências, são encontrados em torno dos extremos e não da média global. A função seno vive mais tempo em torno dos extremos -1 e 1 do que a passar fugazmente pelo zero. Pelo que ao olhar para as estatísticas de oscilações geofísicas como o El Niño ou a Oscilação do Atlântico Norte, encontramos tipicamente uma bimodalidade, com prevalência de uma bipolarização entre estados extremos, e bem mais fraca densidade de ocorrências em torno de estados intermédios. Não é drama meus amigos, é o reflexo estatístico da natureza física de qualquer oscilação. Sendo que no caso climático há sempre um “twist” com tanto de fascinante como de desafiante: as oscilações climáticas não são puramente periódicas. Na verdade, têm arritmias!

A relatividade dos extremos no pulsar arrítmico da Natureza

Sem prejuízo do drama ambiental e humano associado, eventos extremos fazem parte do pulsar arrítmico de uma Natureza em permanente evolução, uma Natureza que desafia padrões, que desafia convenções, e que dia após dia relembra à Ciência, a verdadeira Ciência, o dom do encantamento... e da humildade.

Os fenómenos extremos não são necessariamente os mais destrutivos num sistema. São pura e simplesmente os menos habituais, as excursões transientes num sistema que não está permanente adormecido num equilíbrio estático. Todavia, é natural que apenas chamem à atenção os extremos que causam impactos significativos, a tal ponto que quando algo destrutivo acontece cria-se logo a impressão de ser um fenómeno extremo, mesmo não o sendo. Dias de tempo ameno nos polos configuram extremos brutais. Como o são dias secos e ensolarados nos climas mais húmidos.

Se alguém é habitualmente sereno e um dia vem e “parte a loiça toda”, isso é tido por fenómeno extremo. Como também se alguém está habituado a “partir a loiça toda” mas um dia até se porta serenamente, esse comportamento pode ser considerado extremo relativamente a tal referência. Ser extremo é sempre relativo.

Tomando agora um exemplo prosaico da política do dia-a-dia. Num país posicionado à esquerda do centro político internacional, partidos que internacionalmente seriam centristas são percepcionados como sendo de direita relativamente ao centro político nacional. Os de esquerda mais radical apareceriam como uma esquerda mais moderada. E os que internacionalmente são reconhecidos como direita moderada seriam percepcionados nacionalmente como sendo uma direita mais radical.

Se levássemos o moderado centro-direita austríaco para Portugal, estaria ali enquadrado como direita radical. E então se levássemos forças austríacas mais à direita, toda a direita portuguesa sem exceção teria de sentar-se à sua esquerda. Raciocínio complementar se aplica aos Estados Unidos. O Partido Democrata, ali visto como de esquerda, poderia encontrar paralelo português não tanto no Partido Socialista, mas mais no Partido Social Democrata. E o Partido Republicano? Em tempos, talvez uma espécie de CDS. Agora talvez mais próximo de um Chega.

Se bem que obviamente as coisas não são lineares. Mesmo havendo uma matriz dominante em cada força, nela há sempre um pouco de tudo. Atenção que não sou de ciências políticas. Esta é apenas a minha percepção cidadã para contextualizar a relatividade dos extremos.

Voltando à Natureza. Tempestades. Se estivermos em zonas climáticas onde tal realidade é recorrente e persistente, então não podem ser considerados extremos per se. A sua falta, isso sim, é um fenómeno extremo. Chove a cântaros nas Arábias? Extremo. Dia glorioso de sol abrasador na Irlanda? Extremo.

Outro exemplo. Ondas de calor. Tipicamente definidas como desvios significativos e persistentes de temperatura relativamente a uma referência estatística convencionada com uma arbitrariedade desconcertante. O que cientificamente é questionável, já que o que é considerado desviante perante uma referência temporal já o não são relativamente a outra referência à escolha. Num clima em permanente mudança, não faz muito sentido falar de “referências” estáticas, em climatologias.

Quando o que era extremo se torna habitual

Tomando referências dinâmicas, reflexo da atualização permanente das normais climáticas num planeta em mudança, as ondas de calor recuperam a forma de ocorrências com assinaturas espaciais e temporais bem definidas e enquadradas numa dinâmica pautada por ocasionais excursões profundas e significativas relativamente ao padrão de funcionamento que esteja então em vigor.

Tão simplesmente, a base térmica do sistema climático global está a temperatura mais elevada hoje em dia do que há umas décadas atrás. Relativamente à nova e desafiante base climática em que vivemos, não há necessariamente mais ondas de calor do que há décadas atrás. Tudo depende da forma arbitrada para definir tais ocorrências. É natural que hoje apareça quase tudo “vermelho” (quente) se se fizer as contas relativamente a um clima de referência mais fresquinho que já não existe.

Por exemplo, comparar o desvio do verão de 1976 legitimamente enquadrado relativamente a uma referência 1951-1980 com o verão de 2022 cuja relação à referência de 1951-1980 já não é um desvio configurador de uma mera onda de calor, de um fenómeno extremo, mas em larga medida uma transição estrutural e sustentada para um novo regime termodinâmico, onde aquilo que no passado seria extremo é agora parte do funcionamento habitual do sistema climático.

Como atrás apontado, temos tão simplesmente um planeta cuja base de operação assenta num regime mais quente, o que retorce toda a dinâmica com mais energia disponível para dissipar em processos mais destrutivos e produtores de entropia. Daí muitas vezes se falar num “novo normal”, em que se torna mais habitual a natureza “partir a loiça toda” do que gravitar em torno de regimes mais amenos.

Da irreversibilidade das tendências à do pulsar acíclico

Há todavia a notar que a dinâmica de clima não se faz de tendências lineares irreversíveis. Faz-se de flutuações acíclicas (i.e. não-periódicas), irreversíveis como é natural, mas não irremediáveis. O tempo não volta para trás, mas o que hoje aumenta um dia vai diminuir de outra forma, sem que haja um ciclo pré-definido ou frequência de retorno. Porque a natureza não segue uma linear seta do tempo. Tem retroações, voltas e contra-voltas (feedbacks, twists and turns).

Na prática, a natureza opera permanentemente no sentido de dissipar o extra de energia que vá sendo produzido e acumulado, consumindo tal potencial termodinâmico a produzir entropia. Por exemplo, fogos e tempestades: um clima mais energético favorece a ocorrência de tais fenómenos com maior ferocidade do que aquela a que estávamos habituados, porquanto a natureza responde de forma tão genial ao estado “febril” em que se encontra. Termodinâmica simples: há mais energia disponível para dissipação. Mais energia livre para produzir entropia.

É também por isso que não convém andar a dar doces aos miúdos se querem sossego na longa viagem pela autoestrada. O extra de energia associado ao “sugar boost” favorece a ocorrência de picos de hiperatividade. Quem nunca presenciou os formidáveis tornados lá no banco de trás?

Posto isto, é necessário dramatizar? Claro que não. É preciso, isso sim, preparar as infraestruturas e as pessoas não só para regimes habituais, mas também para regimes extremos, e para uma nova realidade em que os extremos passam a ser o habitual. Sai caro? Claro, mas bem mais barato prevenir do que remediar o prejuízo decorrente de falta de preparação. Para não se repetirem situações como asfalto a derreter em Inglaterra enquanto nas Arábias, com temperaturas bem mais elevadas, o asfalto mantém integridade estrutural e funcional.

E os incêndios, tão na ordem do dia?

Muito embora haja incêndios rurais de óbvia origem humana, por negligência ou dolo, não é sempre preciso mão humana para tal ocorrer. Naturalmente, o calor em si mesmo não causa ignições. Os fatores na sua génese são variados e muitas vezes resultantes de uma combinação infeliz de factores, atuando a situação climática como catalisador facilitador, e não como agente cabalmente causador.

Quer queiramos quer não, muitos incêndios em ambiente natural fazem parte do metabolismo da Natureza. Na sua condição natural, permitem efetuar uma limpeza ecossistémica brutal mas salutar, reforçando a resiliência e vitalidade de sistemas complexos como as florestas genuínas adaptadas por longos processos coevolutivos com as dinâmicas dos incêndios naturais, onde de outro modo continuariam a propagar-se espécies menos aptas a viver e prosperar perante a adversidade.

O problema surge quando nos colocamos na linha de fogo, edificando infraestrutura nos corredores preferenciais de tais fenómenos naturais, ou substituindo o coberto florestal já apto a resistir e vingar perante incêndios, por plantações florestais que atuam como rastilhos de pólvora magnificadores de tal risco a ponto de comprometer a integridade estrutural e funcional até das florestas ditas resilientes. Sem esquecer naturalmente a ocupação agro-pastoril de terrenos que ou são tratados com o devido cuidado, ou sujeitam-se a que seja a natureza a efetuar tal limpeza com o varrimento termodinamicamente mais eficaz acima indicado: o fogo.

Por exemplo, os incêndios a que já presenciei de forma mais visceral na vizinhança ocorreram por motivos diversos. Já levámos com relâmpagos, mas felizmente estávamos à espera. Mas há imponderáveis. Uma vez, alguém partiu uma garrafa de vidro no mato. A curvatura do vidro terá concentrado, qual lupa, os raios solares no terreno mal cuidado, levando à ignição e consequente propagação desenfreada. O vento levou à direção das nossas terras, onde só não entrou a matar por nós termos tudo limpo e participado na luta ativa com a demais vizinhança... Ainda assim, todo o cuidado é pouco e, sejamos francos, há sempre uma dose de sorte ou azar nestas matérias. O risco pode ser reduzido mas não neutralizado.

Compreendendo o passado, gerindo o presente, preparando o futuro

Para haver um incêndio rural gravoso é condição necessária haver matéria combustível substancial, a começar por vegetação particularmente vulnerável como sejam árvores resinosas, matagal e pasto seco, entre outros. Situação naturalmente agravada por quadros de seca meteorológica, hidrológica e agro-florestal. Reduzindo tal vulnerabilidade com uma melhor gestão de combustíveis bem como dos ecossistemas e dos parcos recursos hídricos reduz-se o risco de incêndio.

A questão da temperatura e humidade apenas releva significativamente quando não foi feito o trabalho de casa em termos de prevenção e gestão de tal matéria combustível. Ora senão vejamos: a sílica das areias do deserto não arde assim. Podem estar 50 graus Celsius, vento descomunal e humidade praticamente nula, que pura e simplesmente a areia não arde como o matagal que com negligência grosseira é deixado acumular em meio rural do nosso querido Portugal, e não só.

Há todavia a notar que, muito embora a matéria combustível seja condição necessária, não é por si só suficiente. É preciso haver um processo conducente à ignição. Seja a “lupa” que referi acima, seja uma beata de cigarro atirada janela fora por algum chico esperto que circula na estrada, sejam queimadas de resíduos agrícolas ou churrascadas inconscientes. Sejam obviamente quaisquer ilícitos alavancados por motivações desviantes de índole económica, social e até passional.

Lá está a tal mão humana que, não sendo um invariante universal, também não é de escamotear. Ou não houvesse tanto incêndio a começar mesmo pela fresquinha da noite, em sítios de acesso difícil onde não circula o cidadão comum. Ou em pleno dia junto à estrada (ai essa “beata”). Se bem que também há a “mão” eletrodinâmica, o tal relâmpago aqui e ali, que não é de menosprezar.

Cada um de nós tem o seu papel na prevenção e luta. Aqui, quando de visita a casa na pátria lusa, parte do tempo é passado no terreno a afugentar perigos junto com a vizinhança, para o trabalho de uma vida não arder numa hora fugaz. De volta à diáspora e em serviço, além das mil e uma responsabilidades académicas, científicas e de gestão, trabalha-se também em soluções inovadoras por forma a capacitar e apoiar as instituições ligadas à segurança e proteção civil, em articulação com os nossos parceiros que trabalham com prioridades similares. Os Estados com que trabalhamos não aparecem nas notícias. Claro, porque ali apesar de todos os riscos e desafios, a nossa Ciência é aplicada e as situações cabalmente resolvidas.

No meio de toda a complexidade que rodeia a temática dos incêndios, há aspetos bastante simples e concretos que podem e devem ser abordados com toda a frontalidade. Tão simples como o cumprimento escrupuloso da legislação que visa proteger a todos nós. Há que evitar a situação recorrente de entidades privadas e públicas a protelar limpeza de terrenos e caminhos durante meses mesmo após os prazos legais e com incêndios a decorrer por todo o país. É lamentável que seja apenas após vigorosa ação das forças de segurança que muitos se dignam a corrigir a situação, tardia e apressadamente, arriscando um incêndio com a tal “faiscazinha” acidental de passar perigosamente maquinaria de limpeza no pico do verão.

Meus amigos, quando há azar, o que há a arder arde, a quente ou a frio. Pode ser difícil impedir a ignição, mas a ação preventiva e atempada é crucial na gestão do risco de propagação de tais incidentes. A responsabilidade é não só individual de todos nós, nas nossas terras, nas nossas práticas, mas também coletiva das instituições. Soluções existem para gerir o problema antes que este tome conta de nós. Haja vontade de as acolher, trabalhar e implementar. Bem hajam.

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