À frente da porta da sua casa, nesta pequena aldeia de Pedrógão Grande, encontra-se uma chapa metálica queimada de um telhado em que estão pintados, a óleo e com as marcas do incêndio, dois rostos angustiados que gritam a fazer lembrar "O Grito", do norueguês Edvard Munch, e uma "besta" a lançar chamas - uma alusão ao inferno, que tantos dizem ter visto naqueles fatídicos dias do incêndio que provocou a morte a 64 pessoas e mais de 200 feridos.
Mais à frente, de uma antena parabólica ardida, João "Viola" fez uma tela para pintar mais um olho, com uma lágrima. Há ainda outro grito com um "Help!" (ajuda) inscrito.
Os olhos, explica, são de "alerta, de espanto, de tristeza". Já os gritos representam aqueles que as pessoas ouviram, vindos de gente e de animais, na noite de 17 de junho."O quadro d'O Grito (de Munch) causava-me impressão, sempre fiquei um pouco fascinado com ele. Agora, percebi o quadro. Vendo tudo isto, percebo", conta à agência Lusa João "Viola", que perdeu quatro primos no incêndio.
Para além dos gritos que ficaram na memória das pessoas, João "Viola" sublinha que continua a ouvir outros - "de silêncio" -, numa aldeia onde morreram 11 pessoas, cinco delas residentes.
Por agora, anda ocupado a plantar flores, a limpar os terrenos queimados com árvores que ficaram cozidas com o calor e a engendrar na cabeça um memorial às vítimas, à frente do tanque onde se salvaram uma dúzia de pessoas.
"Só consegui chegar a Nodeirinho no domingo de manhã" (um dia depois do incêndio começar), diz à Lusa João 'Viola'. Ainda se tentou meter a caminho no sábado, mas o fogo e uma nuvem de fumo compacta, que era "como se fosse meia-noite sem luz", não deixaram.
Pela pequena aldeia, olhando ao seu redor, tenta-se enganar a si próprio."Eu olho para isto e vejo um outono antecipado. Digo que não ardeu para enganar a minha mente", diz o artista, que sublinha que a população ainda não acordou, que "os corações" ainda andam meio bloqueados, que as pessoas ainda não caíram sobre si, a tentarem encontrar uma realidade alternativa àquela com que se deparam - onde antes era um vale verde há agora terra queimada.
João "Viola" conhece bem a terra e sublinha o amor que tem a ela, nos seus dois sentidos - a terra como local onde nasceu e cresceu e a terra por onde despontava uma diversidade que desapareceu por completo.
Lamenta o desaparecimento dos veados, dos javalis, das corujas, das cobras, dos pica-paus e das árvores que por ali cresciam ou se mantinham como referências duma aldeia, como é o caso de um sobreiro que terá 400 anos e que teme que não tenha aguentado o calor das chamas que por ali passaram.
"As plantas são muito importantes. As pessoas aqui são muito ligadas aos seus animais e às suas plantas. Aqui, uma prima ficou com um espaço verde, em que trabalha de forma obcecada para esquecer um bocado, de manhã à noite. É uma terapia", sublinha o artista, que teme pelo futuro de uma região que já era "um deserto verde" - pela "grande mancha de eucaliptos e pinheiros" - e que agora "é um deserto negro".
No meio da negrura, plantar uma pequena árvore, arbusto ou flor significa "renascer", explica, rasgando um sorriso ao contar que viu um zangão a pousar numa flor noutro dia."Uma das coisas mais fantásticas foi ver o sorriso" de um vizinho, "quando lhe deram duas oliveiras. Sorriu imenso", acrescenta.
"Cada planta é um metro quadrado de esperança. É como se fosse um mosaico que irá avançar. Até já fiquei satisfeito por ver silvas a rebentar e não gosto de silvas. Até ervas daninhas. Venham todas, que precisamos delas. Precisamos do verde, para o ecossistema voltar a funcionar", salienta.
João "Viola" não voltou a pintar os gritos que lembram o quadro de Munch ou os olhos lacrimejantes, mas já pensa em voltar a pintar noutra antena parabólica queimada mais um olho, também de alerta. A obra não estará virada para a terra, como as restantes, mas para o universo, "para os povos das estrelas".
"Descarrega-se um pouco a raiva e a tristeza. Logo que possa, apetece-me pintar qualquer coisa verde, uma paisagem verde, mas ainda não pintei nada verde. O trauma, neste momento, ainda é muito e é tudo bloqueado para a tristeza, para o grito, para os olhares, para a dor. Com o tempo, quero pintar verde", conclui.
Lusa