Na última década, a legislação que é aplicada aos animais mudou. Houve alterações no Código Penal e no Código Civil, mas não na Constituição. Foi ainda criada a figura do Provedor do Animal. Afinal, o que mudou e quais as leis que atualmente protegem os animais?
A proteção aos animais está consagrada na lei, pelo menos, desde 1995. Segundo o decreto 92/95, aprovado durante o Governo de Cavaco Silva, “são proibidas todas as violências injustificadas contra animais, considerando-se como tais atos consistentes em, sem necessidade, infligir a morte, o sofrimento cruel e prolongado ou graves lesões animais”. É também estipulado que os animais doentes devem “ser socorridos”, na medida do possível.
Laurentina Pedroso, Provedora do Animal desde 2021, considera imprescindível apostar na proteção dos animais e alerta que a violência contra estes seres vivos está, muitas vezes, ligada à violência contra as pessoas. Segundo dados avançados pela Provedora à SIC Notícias, “mais de 70% das pessoas que foram acusadas de crimes de violência contra animais já estavam referenciadas por outra situação de violência contra pessoas”.
“Proteger os animais é proteger as pessoas, proteger as pessoas é proteger os animais. Porque quando os animais estão em risco, as pessoas estão em risco e quando as pessoas estão em risco, os animais estão em risco”, afirma em declarações à SIC Notícias.
A criminalização dos maus-tratos e do abandono
Em agosto de 2014, foi aprovada, na Assembleia da República, a criminalização dos maus-tratos e do abandono de animais de companhia.
O artigo 387.º do Código Penal determina que, “quem, sem motivo legítimo, matar animal de companhia” ou “infligir dor, sofrimento ou quaisquer outros maus-tratos físicos a um animal de companhia” é punido com uma pena prisão que poderá ir até dois anos. Já o artigo 388.º descreve o crime de abandono de animais de companhia e pune-o com “pena de prisão até seis meses ou pena de multa até 60 dias”.
Apesar de estar consagrado na lei, a aplicação da criminalização dos maus-tratos não tem acontecido. Nem a criminalização do abandono dos animais.
Em causa estão os sucessivos pareceres do Tribunal Constitucional (TC), que têm vindo a declarar que estes artigos do Código Penal são inconstitucionais. Desta forma, os acusados são absolvidos, mesmo em casos em que o tribunal dá como provados os factos.
“A lei mudou, mas não mudou”, diz Laurentina Pedroso. “Quando estas pessoas são todas absolvidas, não há margem para dúvida que a Justiça tem dificuldade em aplicar a legislação como ela existe.”
Laurentina Pedroso defende que a proteção dos animais deve assentar em dois pilares: um primeiro que se baseia em dados de natureza científica e do conhecimento e um segundo à base da legislação.
“Os dados de natureza científica e do conhecimento dizem que as violências se tocam, são comuns e têm de ser punidas. Os maus-tratos aos animais não são algo ligeiro, em que se possa passar uma mensagem de impunidade para quem mata ou tortura um animal”, afirma, apelando a que se inclua a proteção animal na Constituição.
Do lado da Justiça, há também um sentimento de que é preciso clarificar a lei. Sónia Henriques Cristóvão, advogada e membro do gabinete de estudos jurídicos do Observatório Nacional para a Defesa dos Animais e Interesses Difusos (ONDAID), alerta que a lei atual “está construída de uma forma que se presta a diferentes interpretações jurídicas e deixa nas mãos do julgador concreto a interpretação”.
“Isso não pode acontecer porque no âmbito do direto penal, a lei tem de ser muito clara, muito concreta”, sublinha.
Esta situação motivou uma petição “em defesa da lei que criminaliza os maus-tratos a animais” que junta já mais de 58 mil assinaturas. Entretanto, devido às consecutivas pronuncias do TC sobre o artigo, o Ministério Público pediu a inconstitucionalidade da norma da lei.
A morosidade dos tribunais no julgamento dos crimes por maus-tratos é também uma preocupação de Laurentina Pedroso. Por isso, a Provedora do Animal sugere a criação de um sistema de contraordenações que permita penalizar os agressores e desmotivar os maus-tratos.
“Criar um regime expedito de contraordenações, que desmotive claramente as agressões e maus-tratos aos animais com mão firme, coimas elevadas”, defende.
Este processo não iria substituir os processos crime, mas iriam “existir concomitantemente”, acrescenta a Provedora do Animal, usando como exemplo o sistema de contraordenações e crimes que se aplicam no trânsito.
Fim dos abates nos canis municipais
O abate de animais errantes como forma de controlo de população foi proibida em 2016, pela lei 27/2016, mas só começou a ser aplicada dois anos depois, em 2018.
Segundo esta nova legislação, após 15 dias sem que sejam reclamados, os animais “presumem-se abandonados e são obrigatoriamente esterilizados e encaminhados para adoção”. Anteriormente, ao fim deste período – ou até antes –, os animais poderiam ser eutanasiados por questões de falta de espaço nos canis.
A mesma lei estabelece o compromisso do Estado em colaborar com as autarquias locais, movimentos associativos e organizações não-governamentais de ambiente e proteção animal para promover “campanhas de esterilização de animais errantes e de animais abandonados”.
“Já não é permitido às Câmaras Municipais usar a eutanásia para controlar o excesso dos animais. Portanto, as políticas têm que ser outras. Uma das políticas fundamentais – que ainda não se verificou e que tem de entrar em vigor rapidamente – são as campanhas maciças de esterilização de animais. Essas campanhas de esterilização pecam por defeito, atualmente”, lamenta Laurentina Pedroso.
Sem uma atitude ativa de controlo da população animal, os centros de recolha oficiais (CRO) passaram a enfrentar um problema de espaço. “Os CRO e as associações [de proteção animal] estão cheios, há que envolver a sociedade nesta ajuda também”, sugere a Provedora do Animal, sublinhando “não é possível tentar reduzir o abandono e o número de animais, quando há pessoas que deixam os seus animais reproduzirem-se de forma indesejada”.
Laurentina Pedroso critica ainda a inoperância das autarquias neste assunto, mas reconhece que “em dois anos não se conseguem resolver os problemas que foram criados ao longo de décadas”.
As Câmaras Municipais são legalmente responsáveis por promover o bem-estar animal e das pessoas, uma vez que a existência de animais errantes pode constituir uma situação de saúde pública e pôr em risco os cidadãos. Mas quando as autarquias falham, o poder civil pode “tentar ajudar”, prossegue a Provedora do Animal.
“Temos uma proliferação de associações movidas, com certeza, pelo melhor interesse. Algumas que se conseguem constituir legalmente e trabalhar de forma muito clara, outras em que a emoção e a vontade de ajudar os animais é tão grande que muitas vezes saltam os passos legais” – tal como os canis de Santo Tirso que foram atingidos pelos incêndios em 2020, onde morreram pelo menos 73 animais.
Além disso, a Provedora do Animal considera também importante a criação de uma rede de famílias de acolhimento para atuar em caso de maus-tratos aos animais, possibilitando que estes sejam retirados ao agressor de forma célere.
Animais deixaram de ser considerados “coisas”
Em 2017, chegava mais uma conquista para os defensores dos direitos dos animais: a lei 8/2017 estabeleceu “um estatuto jurídico dos animais, reconhecendo a sua natureza de seres vivos dotados de sensibilidade”. Quer isto dizer que o estatuto legal dos animais deixava de ser igual ao das "coisas".
“Começámos com a criminalização em 2014, depois é que foi alterado o Código Civil”, explica a advogada. “O Código Civil veio considerar que os animais deveriam ser objeto de uma regulamentação, deveriam ter um estatuto diferente de coisas.”
Uma das situações em que esta alteração mais efeitos trouxe foi ao nível dos divórcios. Se antes a tutela do animal era decidida da mesma forma que qualquer outro objeto comum ao casal, a partir da aprovação desta lei o bem-estar animal passou a ser tido em conta também na hora de decidir com qual dos donos ficará.
Esta lei não interfere, no entanto, com a questão de inconstitucionalidade levantada pelo TC, uma vez que se tratam de esferas judiciais diferentes. A inclusão da defesa dos animais na Constituição “tem relevância para a criminalização” dos maus-tratos, uma vez que “só pode ser crime aquilo que está protegido” na lei fundamental.
Criação do Provedor Nacional do Animal
Na sequência do “massacre chocante” em Santo Tirso – como lhe chamou o primeiro-ministro, António Costa –, o Governo decidiu dar andamento a uma das propostas que estava inscrita no programa eleitoral do PS: a criação da figura do Provedor do Animal. Laurentina Pedrosa, antiga bastonária da Ordem dos Veterinários, foi a escolhida para o cargo.
“O lugar do provedor prevê que seja uma figura independente – não associado a qualquer partido político – que possa fazer um trabalho a vários níveis”, explica a antiga bastonária.
O Provedor do Animal desempenha um papel de “sensibilizar a sociedade para as questões das causas do bem-estar animal”, avançar com “recomendações ao Governo sobre necessidades da alteração da legislação” e trabalhar em conjunto com as autarquias, promovendo formações e ações sensibilização.