Guerra Rússia-Ucrânia

A saúde após 1 ano de guerra

No início de dezembro, assisti a uma intervenção de Oleksandr Mastkov, vice-Diretor do Centro de Saúde Pública da Ucrânia. O relato daqueles 9 meses de invasão impressionou, porque uma voz embargada e um olhar pesado dão sentidos mais intensos à desumanidade.

Mariana Vishegirskaya foi uma das vítimas do bombardeamento das forças russas à maternidade de Mariupol, na Ucrânia, a 9 de março de 2022.
Mstyslav Chernov/ AP

Tiago Correia

Faz 1 ano que a Rússia invadiu a Ucrânia. Há quem consiga dizer com particular falta de comoção que é preciso aceitar os efeitos colaterais resultantes dos conflitos armados. Dizem-no em relação a ataques que falham o alvo, a abusos das forças armadas face a outros militares e a civis ou à destruição de infraestruturas de sobrevivência, como campos agrícolas, cadeias de abastecimento, escolas e serviços de saúde. Não há como negar que se assiste a tudo isto em solo ucraniano.

No início de dezembro, assisti a uma intervenção de Oleksandr Mastkov, vice-Diretor do Centro de Saúde Pública da Ucrânia. O relato daqueles 9 meses de invasão impressionou, porque uma voz embargada e um olhar pesado dão sentidos mais intensos à desumanidade. Milhares de infraestruturas de prestação de cuidados tinham sido destruídas resultando na morte de dezenas de profissionais de saúde civis e em centenas que ficaram feridos. Não acolhiam armamento nem forças armadas, não alimentavam a guerra, nem atacavam o inimigo.

Os efeitos das guerras na população e na prestação de cuidados são bem conhecidos. Incluem a deslocação massiva de pessoas, incluindo dos próprios profissionais de saúde, que as coloca em especial vulnerabilidade física e psicológica devido às condições de partida, durante os percursos e à chegada; a interrupções no abastecimento de vacinas, medicamentos e outros consumíveis para cirurgias; e à suspensão de atividades de rastreio e vigilância epidemiológica.

Por altura dos 9 meses de conflito, os riscos para a saúde dos ucranianos estavam bem identificados. Os de maior prevalência e maior impacto diziam respeito à saúde mental, feridas, traumatismos, resistências antimicrobianas e riscos radio nucleares. Seguiam-se a generalidade de doenças infeciosas, como a tuberculose, HIV, sarampo, difteria, cólera, Covid, gripe, mas também doenças cardiovasculares e cancros.

Segundo a Organização Mundial de Saúde, 10 milhões de ucranianos lidam com problemas de saúde mental e um sem número precisa de meios de reabilitação física (cadeiras de rodas, próteses e fisioterapia). Um terço da população não tem dinheiro para adquirir medicamentos. Estima-se que este ano a ajuda em solo ucraniano tenha de chegar a mais de 13 milhões de pessoas sem a certeza que seja suficiente.

Este conflito atinge a saúde em muitas outras maneiras devido aos seus efeitos na economia global. A falta de alimentos, fertilizantes e gás, a par com a inflação faz com que muitos milhões de pessoas não tenham aquecimento nem acesso a alimentos de primeira necessidade.

Claro está que as populações mais vulneráveis em África, Médio Oriente ou na Ásia são as primeiras a sentir estes efeitos e aquelas para quem os efeitos são mais nefastos. As agências internacionais vêm reportando nestas latitudes o aumento da fome, da pobreza e do agravamento de doenças evitáveis como consequência da invasão da Ucrânia.

Mas a interdependência global mostra – outra vez depois da Covid-19 – que a vulnerabilidade atinge também os países ricos. Nestes, a dificuldade já se sente em franjas da população que não são apenas as de mais baixo rendimento. Níveis de desemprego pouco expressivos ainda equilibram o acesso estrutural a bens de consumo que têm impacto positivo na saúde e bem-estar. Mesmo assim, a pressão aumenta com a subida do custo de vida e o menor rendimento disponível.

À medida que o conflito na Ucrânia se mantém torna-se claro que os efeitos na saúde são diretos e que vão muito além daquilo que os ucranianos sentem na pele. A esses juntam-se muitos milhões para quem a degradação das condições económicas irá traduzir maior carga de doença, mas também maior contestação social.

Mas a história mostra o quanto a proteção dos sistemas de saúde permite equilibrar essas contestações. O equilíbrio vem de um sentimento de coesão e de solidariedade entre iguais. Todos contribuem para todos.

Em tempos difíceis, assegurar melhores cuidados e dignificar os profissionais de saúde não só protege a população, como contribui para a paz social. Importa não esquecer isso quando se assiste à reivindicação de vários grupos profissionais. Só em Portugal centenas de milhares, entre médicos, enfermeiros, técnicos superiores de diagnóstico e terapêutica e técnicos auxiliares aguardam respostas. As expectativas são legítimas. Aguardemos a sensibilidade política.

Últimas