Guerra Rússia-Ucrânia

Tudo parece natural, mas não é. Esta dormência vem com a guerra e engana a natureza de cada um

Crónica de Rui Caria, na Ucrânia.

Rui Caria

A região do Donbass, sobretudo a cidade de Severodonetsk, mostra-nos uma guerra diferente daquela que acontece mais a oeste da Ucrânia ou mesmo mais a norte, em Kharkiv. A guerra que se trava no Donbass é mais madura, tem já oito anos, começou em 2014. Alguns edifícios da cidade de Severodonetsk chegaram a ser recuperados dos ataques russos dos últimos anos, para voltarem a ser destruídos nesta nova investida que já dura há quase três meses.  

A região do Donbass, sobretudo a cidade de Severodonetsk, mostra-nos uma guerra diferente daquela que acontece mais a oeste da Ucrânia ou mesmo mais a norte, em Kharkiv. A guerra que se trava no Donbass é mais madura, tem já oito anos, começou em 2014. Alguns edifícios da cidade de Severodonetsk chegaram a ser recuperados dos ataques russos dos últimos anos, para voltarem a ser destruídos nesta nova investida que já dura há quase três meses.  

Foi por Kramatorsk que entrámos na região, a cerca de cem quilómetros de Severodonetsk. Aqui as sirenes tocam ininterruptamente e durante o tempo que for preciso. E o som, como se de um traço continuo se tratasse, não tem oscilações de frequência. Este toque dura horas, mas já ninguém se espanta com ele. Como já ninguém se espanta com a escuridão imposta pelo recolher obrigatório ou o som ensurdecedor da artilharia; tanto da que sai, lançada pelos ucranianos, como da que chega, disparada pelos russos para destruir bairros, prédios, casas e por fim as pessoas, que, também no Donbass, parecem estar mais feitas à guerra, mais habituadas a sofrer e a normalizar o absurdo. Tudo parece natural, mas não é; esta dormência vem com a guerra e engana a natureza de cada um. Começa-se a aceitar que é assim a vida. 

O caminho para Severodonetsk, na região do Luhansk, é pautado pela destruição à beira da estrada, carros abandonados e queimados. Aldeias deixadas à pressa. Casas, lojas, escolas, tudo destruído. É uma viagem desoladora, esta, que nos leva a uma das cidades que poderá em breve cair para os russos. Os militares do último posto de controlo antes da entrada da cidade, entre a conversa em ucraniano com o nosso condutor, deixam perceber “press Portugal, kamikase?” Damos todos uma gargalhada e seguimos. Ali fomos encontrar um grupo de pessoas que se juntaram no sofrimento, uma família nascida na guerra. São alguns dos menos de dez mil que ainda restam por estas paragens. A cidade tinha uma população de cerca de 120 mil antes da invasão russa. Severodonetsk é uma cidade deixada à sua sorte. Aparecem-nos no caminho, ou à porta de uma cave, uma ou outra pessoa de longe a longe.  

Os mísseis não nos deixaram alternativa senão escondermos o carros entre dois prédios, não que servisse de muito, mas foi o que nos pareceu mais sensato. Lá estava a tal família de moradores de um dos muitos bairros de Severodonetsk. Fritavam peixe na rua, entre os silvos do mísseis que antecediam as explosões algures por ali. Umas vezes mais perto, outras mais longe. Mas sempre com a cidade da mira. A cada silvo, uma corrida para a porta da cave, esperavam um pouco e saiam novamente para continuar o almoço, como se as catacumbas dos prédios representassem a liberdade, em vez da luz do sol. É a vida ao contrário. 

As posições de artilharia, escolhidas pelos militares ucranianos, nos diversos locais da cidade, são quase sempre o alvo dos ataques das tropas do Kremlin. Mas as imprecisões da artilharia russa transformam em alvo o que deveriam ser os danos colaterais. Um tanque ucraniano, estacionado entre as paredes de duas casas, perto deste bairro, estava imaculado; à sua volta, tudo estava destruído. Os moradores, juntaram-se e apagaram os fogos que os morteiros e mísseis do exército russo provocaram nas garagens dos prédios, enquanto tentavam atingir o tanque, que, devendo ser alvo, nem dano colateral foi nesta guerra das imprecisões que transparecem na narrativa pueril de Sergey Lavrov, o Ministro das Relações Exteriores da Rússia, que, a cada discurso sobre um ataque bem sucedido do seu exército, refere invariavelmente a precisão dos mísseis russos, fazendo lembrar que quando uma senhora tem de dizer que é uma senhora, é porque não é.  

Mais a oeste, mais morte. Em Bakhmut, na região de Donetsk, as equipas de socorro trabalhavam como podiam, debaixo de bombardeamentos, num prédio destruído. Ao lado, outro prédio que durante algum tempo serviu de base a alguns militares ucranianos estava intacto, apenas com alguns danos exteriores provocados pela explosão no prédio contíguo. Ainda hoje não se sabe quantas pessoas estavam em casa naqueles apartamentos que vieram abaixo, alegadamente por imprecisão. Contámos sete mortos. Entre estes uma mãe e um bebé retirados pelos bombeiros para partilharem o mesmo saco preto com fecho vermelho. Não sabemos quantos morreram ali, como possível é, também, que nunca venhamos a saber ao certo quantas vidas irá levar esta guerra que espalha o seu manto de terror pelas cidades, vilas e pelas pequenas aldeias perdidas na planície imensa da Ucrânia, tão imensa quanto a guerra que por ela passa e que parece nunca mais passar. 

Últimas