Guerra Rússia-Ucrânia

Covid em tempo de guerra

A covid não deixou de existir ou de preocupar porque a atualidade da guerra se impôs. Não há a menor dúvida da relação entre cenários de guerra e o aumento de doenças, infeciosas e não só.

Tiago Correia

Do mesmo modo que a Covid-19 não era mais grave ou preocupante por estar na agenda mediática diária, também não deixou de existir ou de preocupar apenas porque a atualidade da guerra se impôs. A influência da invasão da Ucrânia na gestão da pandemia merece atenção, mesmo que a situação específica de Portugal pareça ter atirado o assunto para trás das costas (e sobre isso aguardemos pelas próximas semanas).

Não há a menor dúvida da relação entre cenários de guerra e o aumento de doenças, infeciosas e não só. Os motivos são fáceis de perceber: deslocações desordenadas e massivas de pessoas, incumprimento de medidas sanitárias e de higiene perante a óbvia preocupação com a sobrevivência, corpos mais vulneráveis e frágeis, destruição de serviços de saúde, de programas de vacinação e de rastreio de doenças, falta de profissionais de saúde e, compreensivelmente, a maior atenção dada a ferimentos causados por ataques armados e/ou químicos. Apenas nomeando dois exemplos de conflitos recentes, há registo do aumento de tuberculose, poliomielite e sarampo na Síria e de ébola na República Democrática do Congo.

Também é fácil de perceber que esta relação extravasa as fronteiras do conflito e atinge os países vizinhos. Está em causa a incapacidade dos serviços de saúde e sociais em darem resposta a elevados fluxos de refugiados, cuja vulnerabilidade e problemas de saúde tanto advêm da fuga como das condições de acolhimento e permanência nesses países. Outra crise de refugiados, a do norte de África desde a Primavera Árabe, ilustra bem este argumento. Pense-se nos campos de refugiados em Itália, Grécia, Turquia ou Espanha.

Encontramos tudo isto em relação à Covid-19 no atual conflito na Ucrânia. Antes da invasão, os países do leste e a Rússia suscitavam particular preocupação na região da Europa. Eslováquia, Hungria, Polónia e Ucrânia enfrentavam uma importante vaga de casos e de mortes, muito acima da média europeia. Os dados referentes à pressão nos sistemas de saúde escasseiam, mas mostram uma situação difícil na Eslováquia e Roménia. Isto tudo num quadro de progresso lento da vacinação. A população com a vacinação completa na Europa era de 65% em meados de fevereiro (92% em Portugal), enquanto na Moldávia era de 25%, 35% na Ucrânia, 42% na Roménia e 58% na Polónia. Os restantes países desse bloco tampouco tinham dados disponíveis.

Com a invasão, os rastreios na Ucrânia foram interrompidos, numa altura em que se registava 60% de positividade dos testes (valor record nesse país), ao passo que nos países vizinhos fortes variações dos números dificultam a interpretação. A vacinação em todos estes países estagnou desde então, cuja consequência conhecemos bem. Isto é particularmente sério porque o que está em causa é a deslocação em massa de populações com baixos níveis de vacinação e para países que enfrentam o mesmo problema. Há ainda as pessoas que ficaram na Ucrânia e para quem a ajuda internacional é dificultada pelo incumprimento do cessar-fogo e pela destruição de instalações de saúde. Notícias recentes indicavam que a falta de oxigénio na Ucrânia representava uma sentença de morte agonizante para mais de 1700 doentes com Covid-19.

Jamais esta situação pode justificar a recusa de ajuda ou situações incompreensíveis de degradação do conforto no acolhimento de refugiados e deslocados pela imposição de regras sanitárias, tais como o isolamento de crianças e de famílias ou quarentenas em espaços lotados. O que estas pessoas mais precisam agora é de um pouco de humanidade.

Mas, o que não pode ser negado é que a Covid-19 simplesmente não desapareceu e o quanto estas circunstâncias exigem ser reconhecidas porque agravam a gestão da pandemia.

É imperativo que no território ucraniano sejam cumpridas as elementares regras sobre os civis, as forças humanitárias e de saúde. É imperativo que o apoio de saúde seja garantido e que cesse a destruição dos recursos de saúde para evitar danos superiores à desgraça causada pela guerra.

É imperativo também pensar na ajuda aos países vizinhos que estarão sobre enorme pressão. Disponibilidade de oxigénio, vacinas, outras terapêuticas, profissionais de saúde e ventiladores fazem parte do pacote essencial de ajuda apenas para fazer face à Covid-19. É importante evitar surtos de Covid-19 – e das demais doenças infeciosas – nos espaços destinados ao tratamento das feridas de guerra.

Trata-se de uma realidade muito diferente daquela com a qual nos deparamos em Portugal, por conta da estrondosa adesão à vacinação e de níveis controlados e planeados de acolhimento de refugiados. No centro e leste da Europa o cenário é outro e bem mais incerto.

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