Eleições Legislativas

Necessidades e eleições: como escolher a “verdade oficial” para a democracia?

OPINIÃO DE MÓNICA RIBAU

Algures no fim do século XVII, Henry IV de França prometeu que, se Deus o ajudasse, iria garantir que cada camponês tinha um frango no prato ao domingo. Se tivesse vivido mais trinta anos, poderia ter lido “Meditações sobre a Filosofia Primeira” (1640) ou o “Discurso do Método” de Descartes – considerado o pai da modernidade e da Revolução Científica. O método científico, por ele introduzido, abriu caminho para que a industrialização da agricultura e da pecuária assegurasse – e assegure – mais frangos e mais gente do que alguma vez na história se julgou possível.

Com base no questionamento do teocentrismo e o uso da razão, intrínseco nas dúvidas cartesianas, o Século das Luzes permitiu a construção dos ideais republicanos e dos pilares da democracia. Quatro séculos depois, escrevo dentro das fronteiras de um estado democrático, na segurança do lar (e de frigorífico cheio), com aves que cantam e não se comem do lado de lá das janelas. O iluminismo prometeu as utopias. “As nossas crianças vão desfrutar de energia elétrica nas suas casas, muito barata para medir. Vão viajar sem esforço pelos mares e por baixo deles. Vão viajar pelo ar com um mínimo de perigo e em grandes velocidades. Vão viver um tempo de vida muito mais longo que o nosso, à medida que a doença se rende e o homem passa a entender o que o faz envelhecer”, relatava  o New York Times, em 1954, citando o discurso de Lewis Strauss, chefe da Comissão de Energia Atómica dos Estados Unidos, à Associação Nacional de Escritores Cienenses. Prometia-se a Nova Atlântida, descrita por Francis Bacon.

Contudo, apesar das semelhanças que roçam, atualmente, a profecia de Bacon, a promessa de Henry IV ainda está por cumprir. E outros novos problemas inimagináveis surgiram. Erradicar a fome é o segundo objetivo dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, e a pobreza é o primeiro (a juntar a toda uma outra lista de preocupações). Afinal, nunca houve tantos camponeses nem tantos frangos no mundo, mas nunca concentrados em tão poucas bocas. E o ano de 2022 entra com preços a subir, a inflação a disparar – e com um esforço cada vez maior em conseguir adquirir produtos. Enfrentamos, como civilização, um ponto de inflexão em que pagar pelo básico – energia, água e comida (café, açúcar, frutas e vegetais) está a passar de necessidade a luxo. A Sociedade Científica está em crise. Como o cavaleiro do apocalipse mais espalhafatoso, a vivência histórica do primeiro Estado de Emergência com a pandemia, e as vagas consecutivas da COVID-19, tornam-se num verdadeiro professor de história, psicologia e, essencialmente, de prioridades. A figura mostra a Taxa de Crescimento Percentual Anual do Produto Interno Bruto (PIB), ,per capita, de 1961 a 2020.

O psicólogo Abraham Maslow sugere em 1943, no artigo “A Teoria da Motivação Humana“, que as necessidades básicas do ser humano estão estruturadas numa hierarquia de cinco níveis, e que só se passa a depender do nível seguinte de prioridade quando o anterior está assegurado. A problemáttica surge quando se fazem corridas no turismo espacial ao mesmo tempo que o sonho de Henry IV ainda não foi concretizado, e morrem milhões à fome.

Afinal, é preciso realçar que uma democracia é uma conquista para estados de princípios comuns, para sociedades iluministas baseadas nos pilares de igualdade, fraternidade e liberdade. E, por vezes esquecido, um capítulo tímido e novato da enciclopédia das monarquias e regimes oligárquicos da história política planetária. A Courrier Internacional escrevia, a abril de 2019, que “entre muitas lições que a história nos dá, há uma particularmente urgente e a necessitar de redobrada atenção, nos dias que correm: a de que a democracia é, por sua própria natureza e funcionamento, um sistema frágil, delicado e com muito pouca imunidade a vírus e bactérias que, com maior ou menor intensidade, a atacam – por vezes até à morte”. A metáfora, que não se sabia tão ingénua, longe estava de se saber tão certa e literal.

O vírus atacou de base, como quem sabe desfazer um castelo de cartas, e a democracia abanou (e abana) que se farta. De 2019 a 2021, a crise sanitária, a crise económica, a crise social e a crise existencial foram profundamente revistas, tanto pelas decisões de combate ao vírus, como pela forma como as pessoas reagiram e reagem como sociedade e indivíduos no dia-a-dia. Desde os bens essenciais à sustentabilidade democrática do país, muitas foram as discussões. Enquanto uns defendiam a pandemia como uma oportunidade de alinhar chakras e mudar a forma de estar no planeta e viver, outros revoltavam-se e mostravam a terrível realidade de quem enfrentava o virus na trincheira da frente. Os exemplos de como, neste mundo, se vive de prioridades instantâneas ou menos instantâneas ficaram escandalosamente visíveis. No caminho pela utopia e crescimento infinito, descobriu-se que quanto mais se sabe, mais se descobre que não se sabe.

Com eleições antecipadas à porta em Portugal, e em clima de nova vaga de pandemia, discute-se se as medidas do atual “governo” são resultado das preocupações com a campanha eleitoral ou do controlo de uma nova vaga de COVID-19. A democracia é debatida a dobrar. Por um lado, os direitos e liberdades dos portugueses estão limitados com as restrições atuais, provocando insatisfação por parte de alguns. Por outro, como Ricardo Costa, defende, a data das eleições e a forma como estas eleições não estão a ser preparadas é um retrato risível da nossa democracia. Como o jornalista destaca, alguns partidos precisavam de ter eleições internas e precisavam de se preparar com calma, as semanas do Natal e do Ano Novo não permitiram campanha nem debates televisivos, o número de debates potencial é imenso e difícil de encaixar em poucos dias, a campanha coincide com uma nova vaga da pandemia, que dificulta a campanha e, por fim, o contacto com eleitores, bem como a abstenção, tende a ser maior num momento mais grave da pandemia. A democracia em Portugal é espremida por uma crise – mais que sanitária – política, financeira e social. Existencial.

Uma democracia é um jardim que só sobrevive se for regado. E a verdade absoluta não existe, por muito que se insista em esperar que a ciência e o jornalismo assumam a responsabilidade. Ter em conta que uma democracia é viável num mundo onde cada um se segue por um nível diferente da sua própria Pirâmidade de Necessidade tem riscos e complexidade. Porque, se por um lado, a democracia vive da promessa da igualdade, por outro, cada um luta segundo o seu último nível assegurado na Pirâmide de Maslow. E a pandemia mostrou, de forma condensada, como Maslow faz sentido:

Nivel 1. FISIOLOGIA (estar vivo – respiração, comida, água, sexo, sono e excreção): o primeiro nível de crise passa por assegurar os bens essenciais e a prestação de cuidados de saúde. Na frente da trincheira ficaram os heróis cuja função é assegurar a sobrevivência dos indivíduos. Limito-me a ficar em casa e cumprir com o que me é pedido. No dia 12 de março de 2020, esvaziei o frigorífico, fechei a porta do meu apartamento em Lisboa, e meti-me no carro, com o meu irmão, rumo à casa dos meus pais.

Nivel 2. SEGURANÇA (sentir-se seguro – emprego, família, território): o segundo nível de crise passa por garantir que as pessoas, para além de vivas, não perdem a sua fonte de subsistência, habitação e núcleo familiar.  Quem tem empresas, empregados ou dependentes a seu encargo, bem como quem fica impossibilitado de trabalhar, mesmo que à distância, enfrenta a crise na próxima trincheira de ação – a económica. Eu, embora tenha sido obrigada a continuar a pagar a renda de um apartamento em que deixei de viver (até o contrato acabar) posso trabalhar à distância. Não tenho que fazer contas ao que não ganho para poder estar em casa, e ao que tenho de ganhar para ter casa onde estar. A minha progenitora ganhou dois filhos em casa, e idas semanais à casa do meu avô para levar medicação – que não se quis longe das suas coisas.

Nível 3. SOCIAL (sentir-se amado – amizade, intimidade): o terceiro nível de crise é responsável por garantir a saúde afetiva e social. Assegurar um ambiente saudável em casa, apoiar os amigos, manter uma relação saudável com o parceiro. Sair de casa para o indispensável, de acordo com o estado de emergência colocou a saúde mental à prova, e as depressões e as crises emocionais disparam. Em março de 2020 desmarquei a churrascada do fim-de-semana seguinte, apostei na comunicação à distância com o namorado e passámos noites e noites em competições de Catan, Scrable e afins… A terceira trincheira colocou-se em ação, uma vez que os níveis um e dois estavam assegurados.

Nivel 4. ESTIMA (ter auto-estima – auto-estima, confiança e conquista, respeito pelos outros): Na quarta trincheira começou a gerir-se a suspensão da democracia, pela primeira vez em 46 anos. Direitos e deveres. A legitimidade das instituições, o funcionamento do dia-a-dia como sociedade democrática e a representatividade da verdade. É aqui que entro em funções profissionais, daquelas cujo objetivo é analisar verdades para as comunicar e, especialmente, assegurar a capacidade de pensar. Os Estados totalitários começam a parecer cada vez mais sexys num mundo de incertezas. Já andávamos em crise pelo quarto nível, antes da COVID-19 atacar pela base, e matar pirâmidade acima. Em final de 2019, falava-se da crise nuclear no Irão e os Estados Unidos, discutia-se o papel dos algoritmos na escolha dos conteúdos e o perigo das eco-chambers na polarização de discurso e nos níveis de extrema direita (e esquerda) apenas vistos na segunda Guerra Mundia. A agenda mediática marcava-se pelos incêndios na Austrália e as preocupações com as fakenews, pseudo-ciência, negacionistas das alterações climáticas e terraplanistas. A pandemia sobrepôs-se a várias “crises complexas”, estranhamente enumeradas por Stephen Hawkings que, em 2016 numa entrevista à BBC, listava o perigo de guerra nuclear, a inteligência artificial, as alterações climáticas e um vírus geneticamente modificado como as principais quatro possíveis razões para a “extinção”.

Nivel 5. REALIZAÇÃO PESSOAL (sentir-se feliz – moralidade, criatividade, espontaneidade, solução de problemas): tal coisa, como sociedade, não existe, só homens e mulheres, indivíduos e as suas famílias – disse Margaret Thatcher. No nível 5, e citando Maquiavel, “dá poder ao homem e descobrirás quem ele é realmente”. Aqui as necessidades são outras, e a pirâmide continua pelo infinito e mais além – até onde as crises existenciais de cada um permitirem. Afinal de contas, em outubro de 2019, discutiam-se os movimentos anti-vacinação, numa consulta pública europeia sobre comunicação e perceção da ciência, no Centro Cultural de Congressos (CONCISE), entre as alterações climáticas, as preocupações dos organismos geneticamente modificados, e o uso de medicina complementar alternativa… Dois anos depois, após o record mundial do fabrico mais rápido de uma vacina, e a maior campanha de vacinação da história, os movimentos anti-vacinação ganharam ainda mais força. Em julho de 2019, a palavra PÂNICO, marcava a capa da Courrier Internacional, com uma abelha morta, caída, aos pés das letras garrafais. Lia-se “é altura de entrar em PÂNICO”. Apesar da narrativa ser “temos doze anos para salvar o mundo”, em 2020 a Conferência do Clima foi adiada por causa da pandemia, e a COP deste ano ficou a meio gás, adiada, novamente, para 2023, por falta de maior acordo.

No primeiro confinamento, enquanto profissionais de saúde só podiam ir à casa de banho de doze em doze horas, a preocupação entre os meus vizinhos era descobrir onde se podia fazer uma manicure como deve ser. Afinal, a democracia não vive da verdade, mas da necessidade de uma “verdade oficial”. Uma verdade eleita pelas necessidades e expectativas da pirâmide de Maslow que cada um carrega no bolso.

Henry IV ficaria muito feliz com os frangos, certamente. E, até isso, não é para todos.

Agora, é tempo de ida às urnas.

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