Coronavírus

Surfando a 6ª vaga (parte I): a clarividência de quatro argumentos 

Não podemos viver em suspenso, mas também não podemos ignorar um vírus cujo impacto na mortalidade continua a preocupar.

Tiago Correia

Cá estamos a tentar conviver com a Covid-19. Ainda identifico nas pessoas alguma da polaridade a que me referi várias vezes: por um lado, aqueles que, toldados pelo medo, suspenderam a vida enquanto aguardam que o vírus desapareça; por outro, aqueles que, toldados ora pelo egoísmo ora pela altivez intelectual, foram ignorando a evolução dos factos em prol de interpretações preconcebidas, parciais e redutoras de uma realidade por demais complexa.

Se não podemos continuar a viver em suspenso porque atingimos níveis de vacinação muito elevados e porque o vírus não desaparecerá, também não podemos ignorar os efeitos da doença na população.

Já do ponto de vista político, a polaridade desapareceu. Entre as nações de relevo internacional, apenas a China mantém a abordagem de supressão da transmissão comunitária, cuja justificação ainda não é clara. A generalidade dos países, Portugal incluído, aceita a circulação do vírus desde que sem impactos significativos para a população e para os serviços de saúde. Note-se que a definição “impactos significativos” tem uma natureza tácita e circunstancial. Se assim não fosse, o alívio das medidas não tinha acontecido enquanto os óbitos não baixassem o limiar estabelecido.

A chamada 6ª vaga trouxe clarividência a quatro argumentos até então discutíveis.

O primeiro é a efetividade da vacinação no controlo da doença. Uma coisa é os resultados obtidos nos ensaios clínicos; outra – que pode ser bem diferente – é a alteração substancial dos padrões de doença na população. Enfim, o crescimento exponencial dos contágios não se traduziu no crescimento exponencial de doença e óbitos. A 5ª vaga tinha-nos deixado essa indicação, que se torna agora mais visível dado que a 6ª vaga é surfada com menos medidas restritivas.

O segundo argumento é que este vírus não tem uma dinâmica sazonal. Embora os verões de 2020 e 2021 o tivessem mostrado, esta ideia pairou no debate até há pouco tempo.

O terceiro argumento é que afinal ainda existem muitas pessoas suscetíveis de contrair a primeira infeção. Por altura da primavera pairou no debate público outra ideia sem fundamento, desta feita que “a floresta já tinha ardido” (expressão usada para justificar a diminuição de casos no final da 5ª vaga). Os dados da DGS/INSA dizem que dos 4.717.123 de casos notificados, cerca de 251.758 são de suspeita de reinfeção, o que perfaz apenas 5%. Por outras palavras: 95% dos casos notificados são primeiras infeções.

Estes dados são importantes porque segundo a evidência mais recente, a maior proteção contra a doença é conferida por uma combinação entre vacinação e infeções prévias. Ora, à medida que as pessoas vacinadas vão tendo contacto com o vírus, a severidade da doença tende a diminuir. Chamo a atenção que este argumento não deve ser interpretado como um incentivo à reinfeção.

Tal como as vagas anteriores ensinaram alguma coisa, a principal aprendizagem da 6ª vaga será qual o grau de normalidade possível perante uma transmissão comunitária descontrolada. Até lá e como disse, não podemos viver em suspenso, mas também não podemos ignorar um vírus cujo impacto na mortalidade continua a preocupar.

O quarto argumento é que a “imunidade de grupo” outrora repetida até à exaustão caiu por terra. Não só a reinfeção parece ser inevitável como os dados continuam a mostrar a diminuição de tempo entre reinfeções (grosso modo entre 3 e 4 meses). Portanto, a certeza quanto ao surgimento de novas variantes associa-se à experiência da ómicron, cujas linhagens têm mostrado a capacidade do vírus em aumentar a transmissibilidade e de evadir a proteção conferida por infeções anteriores.

Em resumo, não só a 6ª vaga demorará mais tempo a ser surfada do que vagas anteriores como é muito provável que novas vagas venham a ocorrer num horizonte imediato. Oscilaremos entre subidas e descidas, pelo menos enquanto se mantiver este nível de testagem – vários países europeus vêm abdicando disso –, medidas restritivas não forem reintroduzidas ou se nenhum acontecimento extraordinário marcar a vida pública.

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