Desporto

Ser árbitro é não receber aplausos e ser "corrupto" logo no aquecimento

Opinião de Duarte Gomes. Ser árbitro nos dias de hoje exige um conjunto de caraterísticas que não estão ao alcance de todos. É também por isso que menos de 1% dos que estão no ativo atingem o patamar mais alto do futebol português.
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Duarte Gomes

Essas exigências ganharam ainda mais sentido nestes tempos, por força do escrutínio quase patológico a que estão sujeitos, quer no processo de decisão, quer na sua imagem e credibilidade.

O "excelente árbitro" não é aquele que nunca erra, até porque esse ainda não nasceu: é aquele que consegue aliar qualidade técnica à capacidade superlativa de ser (e parecer) íntegro, honesto e justo.

O conhecimento teórico

A premissa mais importante que um árbitro deve trabalhar é, naturalmente, a do conhecimento teórico. Todos os jogos têm regras e o futebol não é exceção. São dezassete as que estão escritas, que encerram centenas de interpretações e dúvidas.

Nenhum árbitro terá sucesso ao mais alto nível se não dominar as leis ou se não as souber aplicar na prática. Não basta conhecimento técnico puro. É também importante ter sensibilidade para as regras a aplicar com sensatez, a cada situação de jogo.

A imparcialidade

Outra premissa importante é a da imparcialidade: um árbitro de elite está moral e eticamente obrigado a ser neutro e imparcial em todas as suas decisões. Esta é a mais importante de todas as competências pessoais.

Cada decisão deve ser equidistante de gostos, amizades ou aproximações pessoais. Nenhuma pode ser movida a favorecimento ou a preconceito. O homem fica à porta do estádio, porque lá dentro mora apenas o profissional. Quem não tiver essa capacidade em si, jamais poderá ser respeitado ou bem aceite.

Autoridade

Outro aspeto relevante é o da autoridade, que deve ser exercida de modo natural e nunca impositivo. Um árbitro de topo nunca pode ser autoritário, porque isso demonstra insegurança e incapacidade de ser o dono de todas as situações de jogo. Deve ser capaz de controlar jogadores e bancos técnicos pela via do respeito, do diálogo e da assertividade.

Aplicar bem as regras não pressupõe hostilizar intervenientes (nem adeptos), tal como não pressupõe vacilar perante pressões de que possa ser alvo. Um árbitro deve ser dialogante quando o diálogo se impõe e firme quando a firmeza é a única opção que lhe resta.

Concentração

A concentração é outro ponto crucial, porque determina a forma como o árbitro se mantém dentro (e não alheado) do jogo. Em casa devem ficar todas as preocupações pessoais, familiares ou de qualquer outra ordem. Lá dentro, o foco deve ser total e apenas para o que acontece durante os noventa minutos.

Cada reação, cada detalhe, cada movimento de jogo precisa de ser avaliado por uma cabeça limpa, totalmente limpa. Quem não tem essa capacidade de abstração (que pode e deve ser treinada diariamente), jamais poderá atuar na alta roda.

Condição física

A condição física e a melhor colocação a cada momento são outros dos aspetos determinantes para o sucesso. Não são um fim em si - esse é tomar boas decisões, para salvaguardar a verdade desportiva - mas acabam por ser meios fundamentais para o atingir. O futebol moderno é um desporto cada vez mais veloz, com jogadores-atletas de nível altíssimo.

Nenhum árbitro fisicamente impreparado pode estar perto de todos os lances, com a perspetiva ideal, durante hora e meia de jogo. Além disso, a fadiga crescente retira discernimento e prende movimentos, o que aumenta a exigência nesta matéria. Treino forte, competição fácil. Essa é a regra. Sempre.

Comunicação eficaz

Por último, exige-se aos árbitros de topo uma comunicação clara, eficaz e empática, que torne tudo fácil para jogadores, técnicos e até colegas de equipa. Saber esclarecer, avisar ou instruir é meio caminho andado para o sucesso relacional, para a conquista de respeitabilidade.

Ninguém gosta de um árbitro que só fala com o apito ou com os cartões.

Equilíbrio emocional

Claro que nenhuma destas valências (há muitas mais) fará sentido se não houver calma e equilíbrio emocional.

Um árbitro deve saber gerir situações tensas e controversas com serenidade, sem parecer um bombeiro desesperado à procura de água. A linha entre a diplomacia e a imposição de autoridade pode ser ténue, mas quem nasceu para a função sabe perfeitamente onde termina uma e começa outra.

Nos momentos de maior pressão e crítica, que são terríveis de gerir, é quando deve emergir a capacidade rara (por isso valiosa) de ser educado, apaziguador e personalizado... ou implacável na forma como se condena excessos e condutas inaceitáveis.

Esta é a profissão mais difícil que há no futebol. A única onde não se recebe aplausos e já se é "corrupto" logo no aquecimento, bem antes de se começar a trabalhar. Os árbitros sabem disso, mas fizeram uma escolha de carreira que renovam todos os dias.

Ninguém fica por obrigação. É desafiante? Claro que sim. Muito! Mas como tudo o que é importante na vida... não é para quem quer. É só para quem pode. E nem todos podem.


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