Há um lugar-comum cinéfilo (ou anti-cinéfilo) que tende a fazer crer que os grandes autores do classicismo japonês são criadores que apenas se empenharam no tratamento de factos históricos mais ou menos remotos, por vezes da época medieval. Talvez que Akira Kurosawa (1910-1998) seja o maior “pretexto” dessa crença, mas até mesmo no seu caso essa é uma visão que não faz muito sentido. Vale a pena, por isso, lembrar o caso exemplar de Yasujiro Ozu (1903-1963) através de um filme tanto mais sedutor quanto sabe combinar o tradicional drama familiar com um humor irresistível.
Uma parte significativa da filmografia de Ozu é dedicada ao Japão depois da Segunda Guerra Mundial. E não tanto pela avaliação do seu lugar na geo-política. Antes porque os traumas da guerra e a esperança que, depois, tenazmente, se foi edificando são elementos que Ozu observa numa dimensão de grande intimismo — ou seja, no espaço familiar.
Assim acontece em “Bom Dia”, produção de 1959 que se seguiu a títulos incomparavelmente mais conhecidos como “Viagem a Tóquio” (1953), “Primavera Precoce” (1956) ou “A Flor do Equinócio” (1958). O motor da acção são os mais novos, mais concretamente duas crianças que não se conformam com o facto de os seus vizinhos já terem adquirido a novidade do momento: um televisor! De tal modo que, para pressionarem os seus pais a comprar um mágico pequeno ecrã, decidem entrar em greve… Que espécie de greve? Pois bem, a recusa do diálogo: ficam em silêncio e não falam com os pais.
O que é espantoso no trabalho de Ozu não é apenas o carácter anedótico da situação. É, através do riso, a subtileza com que ele sabe expor as dinâmicas de uma sociedade a viver processos de discreta transformação, desde a integração das novidades da tecnologia até às mudanças nas relações pais/filhos.
“Bom Dia” funciona como “remake” de um outro filme de Ozu, realizado em 1932, ainda mudo: “Eu Nasci, Mas…” Claro que a televisão não era o tema desse filme, mas nele encontramos a mesma preocupação em tentar perceber como é que os valores sociais “encarnam” no espaço familiar e de que modo acontece a sua transmissão dos mais velhos para os mais novos — são histórias visceralmente japonesas, sempre com um contagiante apelo universal.