Não demorei muito a escolher Margaret Atwood como a minha figura do ano, na área da cultura.
A escritora canadiana que em novembro completou 80 anos de vida representa muitas das coisas que me são queridas e com as quais me identifico. Se hoje leio os seus livros (com atraso, já o admiti) também o devo à minha avó materna que aprendeu a ler já adulta, a partir dos ensinamentos do meu avô, debruçada na bancada da cozinha sobre "A Comarca de Arganil" . Foi dos primeiros jornais que li. Chegava pelo correio, dobrado em 4, e acabava no fundo da gaiola dos canários, uma vez folheado pela maioria dos 7 que lá viviam em casa.
A minha avó chegou aos 96 e, por causa dela, olho para os mais velhos com um enorme respeito e sem uma ideia de fim. Atwood faz-me pensar nela: octogenária, não se comporta como uma mulher a caminho do final da vida. É que ainda há muito por fazer.
Este ano, Margaret Atwood ganhou o Booker Prize pela segunda vez. Partilhou com Bernardine Evaristo o prémio maior da literatura em inglês. Foi por causa do livro "The Testaments" , a sequela do já referido "The Handmaid's Tale".
Não deixa de ser curioso: editado em 1985, "The Handmaid's Tale" integrou a lista de finalistas para o Booker Prize no ano seguinte. Não ganhou. O livro esteve como que adormecido até 2017, ano em que a plataforma de streaming Hulu decidiu passá-lo para a televisão numa série com fabulosas interpretações femininas e outra, de Joseph Fiennes. 2019 foi o ano da terceira temporada, já distante do livro de Atwood, mas com produção executiva da escritora o que confirma o seu aval. Há uma quarta prevista para 2020.
A história de um país que dá lugar a outro parece hoje muito mais realista do que em 1985. Pelo menos, para os ocidentais. Gilead surge no lugar dos Estados Unidos da América. Nessa sociedade distópica mandam os homens, e as mulheres estão separadas por hierarquias, estando as de idade fértil no fundo da pirâmide. Vivem para servir os homens e as suas esposas com o único intuito de lhes darem os filhos que tanto ambicionam numa sociedade envelhecida, quase sem crianças. Distopia? Tudo se passa numa sociedade sob vigilância total, controlo de cada movimento, impossibilidade de criticar, de comunicar; plena de temas proibidos.
Sobre isto escreveu Margaret há mais de 30 anos. E mal saiu a sequela - sob o título "The Testaments" - as vendas acompanharam a sede de saber mais sobre esse imaginário de Gilead. No Reino Unido, na primeira semana após a publicação foram vendidos mais de 100 mil exemplares. No mesmo período, mas nos EUA, 125 mil. Em ambos os casos, um recorde de vendas numa primeira semana de publicação. Isto aconteceu em 2019, quando a literatura está longe de estar em primeiro plano.
Ainda não terminei o livro em versão inglesa que comprei em setembro numa Waterstones dos arredores de Londres (em Portugal vai ser publicado em Março de 2020 pela Bertrand), mas enquanto o tenho na mão sinto um orgulho profundo pela mulher que não conheço.
Lady Oracle (A Senhora Oráculo) - nome de um dos livros de Atwood que lhe ficou colado à pele por ser, também ela, alguém com uma certa tendência para a premonição - eterna candidata ao Nobel da Literatura, vê para além do que vemos e, como poucos, descreve o que imaginou.
Seria melhor o mundo se o que foi inventado por Atwood não passasse disso mesmo, de uma invenção. Mas já que temos os livros e a série (os livros e as séries, não esquecer "Alias Grace") aproveitemos 2020 para ver o que não vimos, para ler quem nunca lemos.