Que Voz é Esta?

“Um terço das pessoas com problemas cardíacos tem depressão; ter uma doença física aumenta a probabilidade de doença mental e vice-versa”

No mais recente episódio do podcast “Que Voz é Esta?” conversamos com Graça Cardoso, investigadora do Lisbon Institute for Global Mental Health e antiga diretora do Serviço de Psiquiatria do Hospital Fernando Fonseca, e com Mafalda Miranda, psicóloga clínica e da saúde, e psicoterapeuta, sobre as doenças físicas que causam com mais frequência sérios problemas de saúde mental

Que voz é esta?

Hoje em dia é inegável que existe uma forte ligação entre a saúde física e a mental. Vários estudos realizados nas últimas décadas mostraram que a prevalência de perturbações psiquiátricas em pessoas com doença física é muito elevada, alcançando valores superiores aos registados na população em geral.


A depressão e a ansiedade são as perturbações mais frequentes. “A incerteza em relação ao futuro, à evolução da doença, aos tratamentos que terão de ser feitos e às limitações que a pessoa poderá vir a enfrentar, tanto a nível profissional, como familiar, causam muita angústia. Ao mesmo tempo, há atividades, rotinas e tarefas que têm de ser interrompidas, devido à doença. Todas estas perdas podem levar à depressão”, explica Graça Cardoso, investigadora do Lisbon Institute for Global Mental Health, e antiga diretora do Serviço de Psiquiatria do Hospital Fernando Fonseca (Amadora), em entrevista ao mais recente episódio do podcast “Que Voz é Esta?”. Um estudo realizado pela psiquiatra e outros investigadores com pessoas internadas num hospital geral, em 1995, revelou que quase 60% destes doentes tinham depressão ou ansiedade.

Os doentes oncológicos estão particularmente suscetíveis ao aparecimento de doença mental, devido à gravidade da doença, aos efeitos secundários dos tratamentos e às limitações físicas decorrentes do cancro.

Mas há outros problemas que têm igualmente impacto na saúde mental, como a doença cardíaca, sublinha Graça Cardoso. “A doença coronária, por exemplo, é extremamente prevalente na população portuguesa, e a depressão e a ansiedade também. Portanto, estamos a falar de um grupo muito grande de pessoas.”

A insuficiência cardíaca também se destaca neste aspeto, por se tratar de uma “doença grave com um prognóstico muito reservado e estar associada a uma série de mecanismos fisiopatológicos que podem sobrepor-se aos da depressão e ansiedade, potenciando a gravidade da doença física.”


Outras doenças que causam frequentemente problemas de saúde mental nos doentes são os acidentes vasculares cerebrais, a artrite reumatoide e a dor. "A dor crónica produz uma grande incapacidade e sofrimento, limitando severamente a pessoa. O desespero e a depressão podem ser tão graves que levam ao suicídio."

Durante séculos, a saúde mental e a física foram estudadas e abordadas separadamente, enquanto entidades independentes, o que não produziu resultados especialmente bons. "Isso teve um impacto negativo quer no tratamento, quer na abordagem aos doentes. As pessoas com doença mental foram remetidas para um mundo à parte, o que reforçou um estigma que ainda hoje prevalece", aponta Mafalda Miranda, psicóloga clínica e da saúde, psicoterapeuta, também em entrevista ao podcast.

A psicóloga, que trabalhou mais de 20 anos num hospital geral numa equipa de psiquiatria de ligação, dedicando-se em particular às áreas da Dor e dos Cuidados Paliativos, explica que a doença mental também aumenta a probabilidade de desenvolver uma doença física, devido a estilos de vida mais sedentários, alimentação pouco saudável e mais comportamentos de risco para a saúde, como o abuso de álcool, drogas ou tabaco, ou ter relações sexuais não protegidas.

Acrescenta ainda que a existência de "vivências adversas na infância, como o abuso, a violência doméstica e a negligência" também estão associadas a uma maior probabilidade de desenvolver problemas de saúde física, entre os quais a dor crónica.


Há um ramo da psiquiatria que se ocupa precisamente desta relação entre a doença física e mental, estabelecendo pontes entre a psiquiatria e as restantes especialidades médicas, numa tentativa de humanizar os cuidados que são prestados. É a chamada psiquiatria de ligação.

Graça Cardoso, que foi responsável pela criação do primeiro núcleo de psiquiatria de ligação, no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, em 1986, destaca a importância desta área. "A intervenção das equipas de psiquiatria de ligação pode ter benefícios tão grandes quanto encurtar o tempo de internamento."

Habitualmente, também são feitos planos pós-alta envolvendo a família do doente, no sentido de garantir que este mantém o tratamento que lhe foi prescrito. “ Pessoas com depressão, por exemplo, podem ter mais dificuldades em aderir ao tratamento, precisamente porque estão deprimidas, sem energia, sem ânimo, etc. E isso tem consequências. Basta pensar nos riscos que um doente oncológico enfrenta se simplesmente abandonar os tratamentos de quimioterapia.”

Mafalda Miranda sublinha, por sua vez, que ter equipas de saúde mental nos hospitais e nos centros de saúde permite detetar precocemente situações de sofrimento e mal-estar psicológico, e até prevenir o aparecimento de doença mental em pessoas com doenças físicas.

A "esmagadora maioria" dos hospitais portugueses têm equipas de psiquiatria de ligação ou, pelo menos, psiquiatras e psicólogos a trabalhar em articulação com os médicos das outras especialidades, esclarece Graça Cardoso.

Mas continua a haver lacunas. "É preciso contratar mais profissionais e é preciso, sobretudo, reorganizar os serviços. Os cuidados estão muito centrados no episódio agudo, na urgência, quando a resposta tem de ser dada previamente, nos cuidados de saúde primários."


“Que voz é esta?” é um novo podcast do Expresso dedicado à saúde mental. Todas as semanas, as jornalistas Joana Pereira Bastos e Helena Bento vão dar voz a quem vive com ansiedade, depressão, fobia ou outros problemas de saúde mental, e ouvir os mais reputados especialistas nestas áreas. Sem estigma nem rodeios, vão falar de doenças e sintomas, tratamentos e terapias, mas também de prevenção e das melhores estratégias para promover o bem-estar psicológico. O podcast conta com o apoio científico de José Miguel Caldas de Almeida, psiquiatra e ex-coordenador nacional para a saúde mental.



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