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Está a par da polémica com um cartoon e da queixa-crime que gerou?

O cartoon, transmitido pela RTP, de um polícia a treinar tiro em alvos com diferentes tonalidades motivou desagrado entre as forças de segurança, alguns partidos políticos e até o Governo reagiu. Os ilustradores explicam que diz respeito aos acontecimentos em França e que, por isso, a queixa-crime da PSP não tem razão de ser. Perceba o que se passou.

RTP

Maria Madalena Freire

Ana Lemos

O vídeo intitulado “Carreira de Tiro” publicado a 6 de julho chamou a atenção das forças de segurança, que classificam o conteúdo de “ofensivo” e “profundamente injusto”. A indignação chegou a um ponto tal, que a PSP apresentou uma queixa-crime contra os autores da ilustração. Acontece que, o cartoon, segundo explicam os autores, nada tem a ver com a polícia portuguesa mas sim com a francesa.

Confuso? Vamos explicar então como aqui chegámos. Nas redes sociais, dois dias após a divulgação do cartoon no espaço habitual da RTP, o líder do Chega partilhou o vídeo em tom crítico. “Isto passou na RTP e é puro incentivo ao ódio contra os polícias. Inaceitável! O Chega vai chamar todos os responsáveis por isto ao Parlamento e vai pedir explicações, para que sejam apuradas todas as responsabilidades. Temos de proteger a nossa polícia, não atacá-los ainda mais!”.

Também o PSD questionou o Conselho de Administração da RTP sobre o mesmo cartoon, considerando que "atenta de forma evidente e infeliz contra a imagem e o bom nome" das instituições policiais.

E, no dia seguinte, o presidente do CDS-PP juntou-se às críticas de Ventura e do PSD, e apontou o dedo ao ministro da Administração Interna, por não ter defendido a honra das forças policiais. Numa mensagem publicada na rede social Facebook, Nuno Melo defende que, "na televisão pública, polícias que representam o Estado foram difamados como racistas que descarregam as armas em função da cor da pele".

No cartoon, da autoria de Cristina Sampaio, colaboradora do coletivo Spam Cartoon, que tem uma rubrica semanal na RTP, vê-se um polícia a disparar. A sua expressão e a intensidade dos disparos vão aumentando de forma gradual. Percebe-se depois que estava a treinar a pontaria em placas com a forma de figuras humanas mas com diferentes tons de pele. No fim, percebe-se que a figura com o tom mais claro não tem qualquer tiro, mas a última de tom escuro está cobertas de balas.

O que se poderá depreender do vídeo é que as forças de segurança têm algum preconceito no que diz respeito às origens dos cidadãos e que discriminam, na forma como utilizam a força e as armas de fogo, de acordo com a cor de pele. Tendo isto em conta, a Polícia de Segurança Pública (PSP) emitiu, esta segunda-feira, um comunicado no qual informa que repudia esta crítica do Spam Cartoon e que apresentou uma queixa-crime contra a RTP.

“Consideramos que o vídeo formula e representa juízos ofensivos da honra e consideração de todos os profissionais da PSP que diariamente dão o seu melhor para garantir a legalidade democrática, bem como, sem qualquer fundamento, propala factos inverídicos, capazes de ofender a credibilidade, o prestígio e a confiança devida à PSP”, lê-se.

Mais. A PSP considera que os juízos feitos “não correspondem à verdade e são profundamente injustos”, tendo em conta que a PSP “foi a primeira força de segurança” do país a aprovar um documento abrangente que “define claramente as regras aplicáveis ao uso da força pública por parte dos seus profissionais”.

“A liberdade de expressão não é um direito absoluto” e, acrescentam, ”o vídeo, ao apresentar os polícias como xenófobos e racistas, não contribui para a desejável paz social, podendo, pelo contrário, contribuir para uma perceção de ilegitimidade do uso da força pública, com potencial para afetar a desejável paz e harmonia social", lê-se no comunicado enviado às redações.

O “outro lado” do desenho

O vídeo é assinado por um grupo de ilustradores chamado Spam Cartoon, composto por André Carrilho, João Paulo Cotrim, Cristina Sampaio, Tiago Albuquerque e João Fazenda. À agência Lusa, o ilustrador André Carrilho considerou que a queixa “não faz sentido”, tendo em conta que o cartoon “não tem nada a ver com a PSP nem com a realidade portuguesa”.

"Nós trabalhamos para a RTP desde 2017 e o cartoon é sempre feito num contexto de atualidade nacional e internacional, neste caso é internacional. Tem a ver com a ocorrência em França, da morte de um jovem francês às mãos da polícia que depois deu origem a vários tumultos pelo país inteiro", explicou André Carrilho.

Também nas redes sociais, o grupo de ilustradores Spam Cartoon refere que o vídeo se insere "num espaço de opinião da RTP que comenta atualidade nacional e internacional”.

Neste caso, o cartoon "Carreira de tiro" alude à situação social em França, motivada pelo episódio em Nanterre. A morte de um jovem pela polícia - por estar a conduzir sem carta de condução - gerou vários protestos violentos e disruptivos, levando a que milhares fossem detidos e que instituições públicas, lojas, carros fossem destruídos ou vandalizados.

Fonte oficial da televisão pública esclarece que "o Spam Cartoon é um exercício de opinião livre sobre a atualidade nacional e internacional que a RTP acolhe desde 2017", sendo da autoria de "alguns dos mais reconhecidos cartoonistas portugueses".

"Em nenhuma circunstância serviu para instigar à violência contra quem quer que seja. Os valores da liberdade de expressão e de opinião são basilares da democracia e do serviço público da RTP", salienta.

Direita “ataca”, Bloco revolta-se

O cartoon não só foi denunciado por forças partidárias, como motivou várias reações, incluindo das forças de segurança e do Governo. Chega, PSD e CDS criticaram desde logo o conteúdo e pediram esclarecimentos à RTP. Ventura apresentou até um requerimento para chamar ao Parlamento o conselho de administração da RTP e a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC).

E o PSD enviou questões ao conselho de administração da RTP, interrogando se o canal tinha conhecimento prévio do cartoon antes de o transmitir e relembrando as responsabilidades de serviço público.

No Governo, a questão parece não ser clara. O ministro da Cultura defendeu que os humoristas e cartoonistas devem ter autonomia, destacando que a animação alusiva à polícia e ao racismo transmitida no canal público alude à "realidade francesa".

"É um 'cartoon' e eu acho que devemos levar a sério essa autonomia do que é o humor e o humor sobre a atualidade política nacional e internacional", afirmou o governante, insistiu que "o humor e o 'cartoon' deve ser um espaço que deve gozar de particular autonomia e de não interferência editorial".

Já o ministro da Administração Interna admitiu desconforto com o cartoon emitido pela RTP sobre polícia e racismo, assegurando que as forças de segurança portuguesas garantem o cumprimento do principio da igualdade.

"Na sexta-feira, tive oportunidade de falar com o presidente do Conselho de Administração da RTP para manifestar desagrado com o facto de um 'cartoon' daquela natureza ter sido exibido num festival que tem tantos milhares de jovens", disse José Luís Carneiro.

“Revoltadíssimo” com toda esta novela e "pressões" ficou o líder parlamentar do Bloco de Esquerda (BE).

"Estou bastante revoltado com o que está a acontecer. Ouvimos o senhor ministro da Administração Interna dizer ao país que, perante algo que foi divulgado pela RTP, pegou no telefone e ligou ao Conselho de Administração da RTP e a pergunta aqui é: quem é o ministro da administração interna para andar a fazer pressões sobre jornalistas ou sobre conselho de administração da RTP. Em que democracia é que nós vivemos?", respondeu Pedro Filipe Soares quando questionado pelos jornalistas.

Na "democracia que o BE defende", continuou, "a liberdade de expressão é o bem maior", com todas as "responsabilidades que daí advenham", sublinhando que "a censura não tem espaço na democracia, que a RTP tem um espaço de liberdade e tem um espaço de idoneidade que tem de manter e que não está refém do interesse de um qualquer governo".

"E o ministro da Administração Interna que acha que tem o direito de ligar ao Conselho de Administração da RTP a tirar satisfações de qualquer acontecimento na RTP mostra muito de como está a Partido Socialista e do que é este Governo do Partido Socialista", criticou.

Pedro Filipe Soares ressalvou que não está “a discutir se determinado cartoon resulta de bom senso ou de mau senso, se é de bom ou de mau gosto, se é muito afrontoso ou pouco afrontoso. E por isso, sim, estou revoltadíssimo com estas declarações do senhor ministro da Administração Interna e com a atuação que o Governo teve nesta matéria”.

COM LUSA

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