Jornada Mundial da Juventude

As lutas, as polémicas e as paixões de Francisco, o Papa dos pobres

Não é de mandar recados por ninguém, em especial quando critica governantes. Por vezes, chega a ser polémico. Adepto de um estilo de vida simples, o “Papa dos pobres” gosta de tango e não esconde a paixão pelo futebol, em especial pelo clube do coração. Aos 86 anos, Francisco participa na Jornada Mundial da Juventude, desta vez em Lisboa.

Papa Francisco durante uma entrevista, no Vaticano, em julho de 2022
Foto Reuters

SIC Notícias

Jorge Mario Bergoglio foi eleito o 266.º Papa da Igreja Católica a 13 de março de 2013. Tornou-se no primeiro Papa nascido no continente americano, o primeiro não europeu em mais de 1200 anos, desde Gregório III, e, também, o primeiro Papa jesuíta da História.

Em Buenos Aires, na Argentina, sua terra natal, demonstrou desde cedo preocupação com os mais desfavorecidos e marginalizados e chegou ao papado com a atitude de desprendimento.

No Vaticano perguntaram-lhe se aceitava a escolha para ser Papa, ao que respondeu: “Eu sou um grande pecador, confiando na misericórdia e na paciência de Deus, no sofrimento, aceito”.

Na altura, explicou que escolheu o nome Francisco por ser uma referência a Francisco de Assis e à “sua simplicidade e dedicação aos pobres”.

“Vós sabeis que o dever do Conclave era dar um Bispo a Roma. Parece que os meus irmãos Cardeais tenham ido buscá-lo quase ao fim do mundo… Eis-me aqui! Agradeço-vos o acolhimento".

Bergoglio iniciava assim o primeiro discurso como Papa. Um texto em que dá especial destaque ao que considera ser o caminho da igreja de Roma.

“É aquela que preside a todas as Igrejas na caridade. Um caminho de fraternidade, de amor, de confiança entre nós. Rezemos sempre uns pelos outros. Rezemos por todo o mundo, para que haja uma grande fraternidade”, disse o Santo Padre na Praça de São Pedro, no Vaticano, completamente cheia.

Os primeiros recados “irritantes” (para alguns)

Na primeira missa pública, Francisco apelou à renovação espiritual dentro da igreja e a uma maior atenção aos pobres, condenou as forças que desviaram a igreja do seu ministério e que a colocaram em risco de se tornar uma “deplorável ONG”.

As palavras escolhidas pelo novo Papa e a forma como apareceu: com uma simples túnica, em vez de usar as vestes papais mais tradicionais, irritou alguns conservadores.

O corte com a tradição não ficou por aqui. Francisco decidiu viver na Casa Santa Marta, onde se alojam hóspedes do Vaticano, e não no Palácio Pontifício.

"Não posso viver sem pessoas. Não sirvo para monge. Por isso fiquei a viver aqui, nesta casa (...). Tornei-me padre para estar com pessoas", confessou o Papa Francisco, numa entrevista ao jornal argentino La Voz del Pueblo, em maio de 2015.

Além disso, usou sapatos pretos, ao invés dos vermelhos tradicionais, teve encontros frequentes com os mais pobres, fez telefonemas inesperados a fiéis anónimos, e viajou no carro de vidro aberto rodeado por católicos que queriam tocar-lhe.

Quem é este homem de poucas palavras, um pouco tímido até, que se tornou numa figura do Mundo?

Um químico a caminho do Vaticano

Jorge Mario Bergoglio nasceu a 17 de dezembro de 1936 em Buenos Aires, na Argentina. Filho de imigrantes italianos, é o mais velho de cinco irmãos. O pai era ferroviário e a mãe dona de casa. Formou-se em química e, mais tarde, escolheu o caminho do sacerdócio. Com 21 anos, iniciou o noviciado na Companhia de Jesus, primeiro no Chile e depois na Argentina, onde, em 1963, terminou o curso de Filosofia.

Começou a dar aulas, mas uma doença respiratória obrigou-o a fazer uma cirurgia e teve que retirar um pulmão. Nada que o tenha impedido de seguir o seu percurso. A 13 de dezembro do mesmo ano, foi ordenado sacerdote.

No ano seguinte, licenciou-se em teologia e, entre os anos 70 e 80, ensinou filosofia e teologia.

Em 1992, foi designado bispo auxiliar de Buenos Aires e, em 1998, arcebispo primaz da Argentina. Iniciou então um intenso trabalho, denunciando injustiças económicas e sociais. O título de cardeal foi-lhe concedido em 2001, por João Paulo II.

Um “político” na defesa dos mais pobres

A ascensão religiosa de Bergoglio coincidiu com um dos períodos mais obscuros da Argentina: a ditadura militar. Durante vários anos, acusou os políticos argentinos de se preocuparem apenas em manter-se no poder.

Durante a crise económica no país, vivia num apartamento, usava transportes públicos ou andava a pé, abdicando do motorista a que tinha direito. Tornou-se um defensor dos pobres e conseguiu promover a posição da igreja em questões sociais nas reuniões com o governo.

O conservadorismo teológico colocou-o em desacordo com as políticas praticadas na Argentina. Bergoglio foi um crítico de algumas iniciativas sociais, como a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo, em 2010.

Ainda antes de ser Papa, Francisco já tinha conseguido conquistar um lugar especial entre os seus seguidores, que apreciavam a sua disponibilidade e o seu estilo de vida sem ostentação. Em 2013, por exemplo, Francisco foi um dos poucos cardeais que, quando chegou a Roma para a eleição do novo Papa, não usou veículos oficiais.

Duas paixões: o tango e o futebol

Francisco sempre foi um amante de autores clássicos e gosta de dançar tango. Durante uma entrevista ao Canal 3 da RAI, assumiu: “um portenho que não dança tango não é um portenho”.

Outra grande paixão que nunca escondeu é a que tem pelo futebol, em especial pelo San Lorenzo de Almagro, a equipa do coração. Guarda religiosamente a camisola assinada pelo plantel e mantém uma ligação muito próxima com o clube, mostrando-se um adepto ferrenho.

A ligação estendeu-se também à seleção argentina que foi recebida, pelo menos, duas vezes pelo chefe da igreja católica, no Vaticano.

O fumo branco e um nome pouco provável

A 13 de março, o fumo branco apareceu e foi recebido em festa pela multidão que estava na Praça de São Pedro. Os sinos da Basílica de São Pedro tocaram. Estava anunciado o novo Papa.

A decisão surpreendeu, pois o argentino não aparecia nas últimas listas de favoritos.

Já no Vaticano, todos esperam que conduza com firmeza a estrutura da Igreja Católica. Francisco herdou um pesado dossier que vinha do pontificado anterior. A igreja estava fragilizada em particular devido aos abusos sexuais nos Estados Unidos e na Europa.

“Tolerância zero” para os abusos sexuais

Em Janeiro de 2014, a Comissão dos Direitos da Criança das Nações Unidas (ONU) recomendou que o Vaticano adotasse medidas para denunciar os suspeitos de abuso sexual de crianças. Dois meses depois, foi criada a Comissão para a Tutela de Menores.

Mais tarde, o Papa assumiu que o tema lhe causava “vergonha”. “Lamento-o profundamente. Deus chora”, disse, comprometendo-se a uma “zelosa vigilância” da igreja católica e reafirmando uma política de “tolerância zero” para casos de abusos.

Em 2015, na encíclica "Laudato Si" (Louvado Sejas), Bergoglio assumiu uma das suas grandes causas, defendendo que os países ricos devem sacrificar algum do seu crescimento e libertar recursos necessários para os países mais pobres, num texto em que propôs uma revolução social, ambiental e económica.

“Chegou a hora de aceitar crescer menos em algumas partes do mundo, disponibilizando recursos para outras partes poderem crescer de forma saudável”.

"Hoje, tudo o que é frágil, como o ambiente, está indefeso em relação aos interesses do mercado divinizado, transformado em regra absoluta", escreveu Francisco, criticando um sistema económico que aposta na mecanização para reduzir custos de produção e faz com que "o ser humano se vire contra si próprio".

Em agosto de 2018 voltam a surgir casos de abuso sexual na Igreja Católica, na Irlanda, Chile, EUA e Austrália. O Papa lamentou o "sofrimento vivido por muitos menores”.

Francisco defendeu, também, que, diante dos abusos, "não basta pedir perdão", e acrescentou que a Igreja tem de "oferecer espaços seguros para ouvir as vítimas e protegê-las". Os casos também chegaram a Portugal.

O combate aos abusos sexuais na Igreja Católica foi assumido por Francisco como uma das suas batalhas, o que o levou a convocar uma cimeira no Vaticano em fevereiro de 2019.

Perante os líderes de conferências episcopais de todo o mundo e responsáveis de institutos religiosos, Francisco apresentou passos para a luta contra os abusos de menores na Igreja católica, defendendo ter chegado a hora de "dar diretrizes uniformes para a igreja".

“Nenhum abuso deve jamais ser encoberto e subestimado, pois a cobertura dos abusos favorece a propagação do mal e eleva o nível do escândalo”.

"Nacionalismos fechados, exacerbados, ressentidos e agressivos"

Em 2020, numa nova encíclica, intitulada "Fratelli Tutti" (Todos Irmãos), dedicada à fraternidade e amizade social, Francisco criticou o reacendimento de populismos, racismo e discursos de ódio, lamentando a perda de "sentido social" e o retrocesso histórico que o mundo está a viver.

"A história dá sinais de regressão. Reacendem-se conflitos anacrónicos que se consideravam superados, ressurgem nacionalismos fechados, exacerbados, ressentidos e agressivos", escreveu.

Sobre o racismo, Francisco disse ser um "vírus que muda facilmente" e "está sempre à espreita", em "formas de nacionalismo fechado e violento, atitudes xenófobas, desprezo e até maus-tratos".


Um Pontificado (de 10 anos) com muitas primeiras vezes

Francisco foi pioneiro em decisões, nomeações e visitas. Em 2019, tornou-se o primeiro Papa a visitar os Emirados Árabes Unidos, naquela que é a primeira visita oficial de um líder da igreja católica à Península Arábica.

No mesmo ano, nomeou a francesa Nathalie Becquart como subsecretária do Sínodo dos Bispos, sendo a primeira mulher a ocupar o cargo e a ter direito de voto.

Francisco nomeou também 111 cardeais, os "príncipes da Igreja" de chapéu vermelho e, em 2020, Wilton Gregory tornou-se o primeiro afro-americano nesta lista.

Em outubro deste ano, a Assembleia Geral do Sínodo dos Bispos, sobre o tema "Para uma Igreja sinodal: comunhão, participação e missão", vai decorrer com um número recorde de mulheres, além de que 70 membros com direito a voto não são bispos é mais uma novidade no pontificado de Francisco.

A III Guerra Mundial "aos bocadinhos"

O pontificado de Francisco ficou fortemente marcado pela Guerra na Ucrânia ou, como lhe chamou o Papa, pela III Guerra Mundial "aos bocadinhos". Francisco desdobrou-se em declarações a pedir a paz para o território.

Ao longo de mais de um ano, muitas foram as intervenções públicas que fez em defesa do fim de um conflito iniciado com a invasão do território ucraniano por parte da Rússia, que considerou "repugnante" e um "massacre sem sentido".

13: o número que liga Francisco a Fátima

Entre as muitas viagens oficiais, estão duas a Portugal. Francisco foi o quarto Papa a visitar Fátima. A ligação à Cova da Iria começou com o simbolismo do dia em que foi escolhido para ficar à frente da Igreja Católica, em março de 2013: no dia 13, uma data associada às aparições.

A profunda ligação a Fátima fez com que Francisco escolhesse: “Maria levantou-se e partiu, apressadamente” como lema da Jornada Mundial da Juventude em Lisboa.

A 13 de maio de 2017, o Papa canonizou Jacinta e Francisco Marto, os pastorinhos de Fátima. A canonização teve lugar numa missa presidida pelo Sumo Pontífice, no santuário de Fátima repleto de peregrinos.

Papa admite “cansaço”

A imagem de fragilidade física alimentou vários rumores sobre a sua hipotética renúncia ao papado, à imagem do que fez Bento XVI, mas em 16 de fevereiro, foi perentório ao afirmar que acreditava que o cargo que ocupava é uma posição vitalícia e que a renúncia de Joseph Ratzinger foi uma exceção.

"Neste momento, não tenho isso na minha agenda", disse Francisco ao Civita Cattolica, na declaração mais clara que fez sobre o assunto da sua eventual renúncia, por razões de saúde.

Francisco vai estar esta semana em Lisboa para participar na Jornada Mundial da Juventude, o maior evento da Igreja Católica. O programa do Papa inclui ainda uma passagem por Fátima.


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