24 de fevereiro de 2022 entrará para a História num lugar superior – em relevância e significado -- ao 11 de Setembro de 2001, ou mesmo à queda do Muro de Berlim (9 de novembro 1989). Foi o dia em que quase tudo mudou. Fazer um balanço do ano internacional terá sempre que começar por aqui. Porque nada será como antes.
1 - A GUERRA QUE NÃO PODEMOS MESMO PERDER
Esta não é apenas mais uma guerra: é uma guerra em território europeu em que o maior país do mundo e provavelmente ainda a maior potência nuclear tenta invadir um dos maiores países da Europa. A ideia, que tomávamos como certa no nosso espaço desde a II Guerra Mundial, que as fronteiras não se definem à força bruta, mas à luz de tratados ou acordos foi definitivamente abalada. O mapa de segurança europeia terá que ser profundamente alterado.
A Rússia passou de ameaça a agressor. Deixou de ser confiável. A Suécia abandonou séculos de neutralidade. A Finlândia décadas. Ambas, em poucas semanas, passaram de estar avessas a entrar na NATO para um sentimento de urgência coletiva em aderir à Aliança Atlântica como opção evidente para a sua defesa perante uma possível ameaça do vizinho gigante, que passou a gerar demasiada desconfiança.
Joe Biden afirmou-o claramente, quando recebeu na Casa Branca o presidente da Finlândia e a primeira-ministra sueca: “Hoje ninguém duvida da importância da NATO: território NATO nunca estará em risco; um país que entra na NATO não ameaça ninguém”. É exatamente isto. Esta viragem de suecos e finlandeses na decisão de entrarem para a NATO (com quem já tinham parceria, mas sempre do exterior) será mesmo a maior alteração geopolítica decorrente do crime russo na Ucrânia.
2 - ACELERADOR DE MUDANÇAS INESPERADAS
A Guerra é um acelerador de mudanças inesperadas e esta tem-no sido, muito em particular. O governo dos Países Baixos anunciou o maior investimento em defesa desde a Guerra Fria, destinando a partir de 2026 ao setor mais 5.000 milhões de euros para travar ameaças globais, como a guerra na Ucrânia.
Por insistência do Parlamento holandês devido à invasão da Ucrânia pela Rússia em 24 de fevereiro, o Governo tomou a decisão de adicionar um total de 14,8 mil milhões de euros ao orçamento da Defesa entre 2022 e 2025, permitindo ao país cumprir o padrão da NATO de destinar ao setor 2% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2024 e 2025. A partir de 2026, o orçamento crescerá estruturalmente cinco mil milhões de euros, o que representa “um grande investimento, cerca de 40% do orçamento estrutural atual”.
Também os dinamarqueses votaram a favor da adesão à Política Comum de Segurança e Defesa da União Europeia. 69,9% dos eleitores votaram no referendo a favor da proposta do governo, enquanto 33,1% votaram contra. A Dinamarca era a única nação da UE que não integrava a política de segurança e defesa do bloco europeu. A primeira-ministra dinamarquesa, Mette Frederiksen, disse que os resultados são “um sinal claro” para Putin.
Em poucos dias vários tabus caíram: a Suíça levantou sigilo e neutralidade de décadas; oligarcas que até 24 de fevereiro gozavam de prestígio e privilégios em respeitáveis capitais europeias viram os seus bens congelados; o Japão e a Alemanha (potências derrotadas da II Grande Guerra) entram pela primeira vez num conflito internacional desde os anos 40 do século passado, ao assumirem o lado ucraniano e contribuírem com armamento. Tóquio assumiu o maior aumento no seu orçamento de Defesa desde a II Guerra Mundial. Zelensky realçou em Washington que uma "paz justa" para terminar com a guerra da Rússia contra a Ucrânia não implica "nenhuma cedência" na integridade territorial ucraniana. "Para mim, como Presidente, uma 'paz justa' não implica qualquer cedência quanto à soberania, liberdade e integridade territorial do meu país".
3 - A RÚSSIA NÃO PODE GANHAR. PONTO
“Dizem que o caminho para o Inferno está pavimentado de boas intenções. Mas o da Lucidez tem às vezes uns desvios curiosos” (“Pele de Homem”, BD de Hubert et Zanzim)
Não pode mesmo. Seria premiar o agressor. Seria o triunfo da imoralidade, da ilegalidade e da indecência. Seria abrir precedente perigoso, a convidar outros “bullies” com poder militar a fazer invasões a países vizinhos mais fracos. Não pode acontecer. Se Putin prevalecer após a criminosa invasão da Ucrânia, outros tiranos podem sentir-se legitimados. Em causa está a continuidade da nossa vida de Bem Estar com Segurança, que pensávamos certa e duradoura. Para a mantermos vamos ter que fazer escolhas difíceis – gastar mais na Defesa, o que nalguns casos significará tirar em áreas importantes.
Perante a imoralidade da agressão não provocada que a Rússia está a fazer, surge como especialmente perturbador verificar (eu, pelo menos, verifico-o com espanto redobrado) como tanta gente a viver em sociedades livres, abertas, democráticas e plurais ainda tem dúvidas quanto a este posicionamento moral. Sobre quem é verdadeiramente o agressor e sobre quem está a ser brutalmente agredido. Não, não tem a ver com o “nevoeiro” da guerra: tem a ver com clareza de princípios e com uma recusa, cada vez mais necessária, em cair em “whataboutism” desfasados, que só confundem e nos distraem do essencial.
4 - O PROBLEMA (GRAVE) DO “WHATABOUTTISM”
Depois de Mariupol, depois de Bucha, depois de Borodianka, depois de Chernihiv, depois de Kremenchuk, depois de Izium, depois de Kharkiv, depois de Kherson, como poderia haver espaço para “whatabouttism”? Como é possível que ainda haja quem assuma a narrativa do agressor? Esta não é a primeira guerra “em direto”. Mas é a primeira guerra que estamos a acompanhar em direto em que estamos do lado do agredido.
E isso faz toda a diferença. Como bem sentenciou Olaf Scholz, em discurso ao parlamento alemão: “Dar armas à Ucrânia não é escalar a guerra, é ajudar um país que está a ser brutalmente agredido. É uma obrigação moral”. Dar armas à Ucrânia não é ‘escalar a guerra’, é permitir que alguém que está a ser, todos os dias, agredido, atacado, destruído, violado, roubado e exterminado possa agir em legítima defesa. A “indústria de armas” sai a ganhar com isso? Certo. Mas a guerra não existe por causa disso. Existe pela irresponsabilidade criminosa e ilegal de Vladimir Putin. Ponto. Quem ganha dinheiro a vender armas está, neste caso, do lado da consequência e não da causa.
5 - DEMOCRACIA VS AUTOCRACIAS: JOE BIDEN TINHA RAZÃO
Democracia vs Autocracias. Eis o que está verdadeiramente em causa. Afinal, Joe Biden tinha razão em colocá-la como prioridade do seu mandato presidencial. O momento atual acentua clara oposição: a Rússia só consegue afirmar-se pela agressão e ameaça. NATO, EUA, Reino Unido, União Europeia encontram pontos de união no interesse comum de travar Moscovo. Fica assim mais clara a necessidade de preservar valores de Democracia e Liberdade. Não são mesmo um dado adquirido.
A União Europeia já vai no nono pacote de sanções. Tem havido travões e problemas, mas a verdade é que a coesão europeia tem deixado muito boa gente de boca aberta. As notícias sobre a morte do projeto europeu são sempre francamente exageradas. Sempre. E mais uma vez. Ursula von der Leyen é uma das figuras políticas que se destacaram desde 24 de fevereiro: lidou com a exceção húngara, acelerou planos de redução da dependência energética da Rússia, encarando de frente opções tragicamente erradas feitas por estados-membros, sobretudo a Alemanha.
Os quatro pilares gizados pela Comissão -- Poupar (energia); Diversificar (fontes); Investir (em renováveis); Financiar (a reconversão) – são o caminho certo. Mesmo que demorado. Mas o risco para a Europa é evidente: Putin está apostado em que o comodismo europeu não saberá lidar com o inverno com menos conforto energético, mas talvez volte a ter uma surpresa. Daí até se verificar uma retirada do apoio à Ucrânia vai um grande passo. E depois há a oportunidade: a União Europeia não é um gigante militar (EUA e Reino Unido juntos são, de muito longe, os maiores contribuintes no apoio militar a Kiev). Mas Von der Leyen e também o chanceler Scholz estão dispostos a fazer da UE o motor da reconstrução da Ucrânia. E essa tem tudo para ser a grande história da próxima década. Ou décadas. A Europa tem tudo para reencontrar o coração do seu propósito se liderar a reconstrução da Ucrânia. Se for capaz disso. Se quiser ter dimensão para isso. Acelerar o processo de adesão foi um bom primeiro passo.
6 - A UCRÂNIA ENTRE A SOBREVIVÊNCIA E A RECONSTRUÇÃO
“Não é hora de ter medo, só raiva” (habitante ucraniano de Kharkiv, após um bombardeamento russo ter destruído a sua casa)
A UE quer liderar a reconstrução, como bem ficou vincado na Conferência de Berlim do passado dia 25 de outubro ou no evento de 13 de dezembro em Paris, promovido pelo Presidente Macron, mas exige em troca garantias de combate à corrupção em Kiev. O financiamento pode exigir centenas de milhares de milhões de dólares e a reconstrução pode demorar uma década ou mais. É uma urgência que não pode esperar “pelo fim da guerra”, pela simples razão que esse “fim” pode nunca vir a ser decretado.
Há que começar já: a destruição física, material, económica, mas também psíquica da Ucrânia enquanto país assim o exige. Como bem explicou a historiadora Stella Gervas, em entrevista à “Visão”: “a Paz não é apenas ausência de guerra, de violência militar. É reconciliação, confiança, circulação de pessoas, bens, ideias… A Paz é para os fortes, a guerra é para os fracos”. Como imaginar, por enquanto, uma convivência pacífica entre russos e ucranianos depois de tamanho trauma? Que feridas os crimes russos destes 250 dias já abriram no futuro das crianças ucranianas? Apagar uma identidade é apagar o futuro. A deportação de crianças ucranianas para apagar a sua identidade e criá-las como russas é uma prova direta do plano para destruir a Ucrânia.
A tarefa primordial da comunidade internacional é desenvolver um mecanismo eficaz de justiça e responsabilidade pelos crimes da Rússia na Ucrânia. Zelensky no Congresso dos EUA: “Rússia podia parar a agressão, mas não o vai fazer porque gosta de ser um Estado terrorista". Aos congressistas dos dois partidos: "O vosso dinheiro não é caridade: é um investimento na segurança global e na democracia que usamos da melhor maneira”. “Precisamos de paz”. “A Rússia podia parar a agressão, mas não o vai fazer porque gosta de ser um Estado terrorista. Os russos ainda estão envenenados pelo Kremlin”, acusou também Zelensky. "Contra todas as expectativas, a Ucrânia está viva e recomenda-se".
7 - A RÚSSIA É UMA POTÊNCIA ANACRÓNICA E EM DECADÊNCIA
“Tal como Estaline, Putin acredita na violência em larga escala para defender o seu poder e os seus interesses” (Anne Applebaum)
Esta será uma das principais conclusões do que a guerra nos mostrou desde 24 de fevereiro: a Rússia tem-se revelado um “flop” a quatro níveis: militares, logísticos, estratégicos e tecnológicos. Há um mistério que permanece no (ir)racional do Kremlin para se ter metido neste erro colossal: duas semanas antes da guerra, Biden terá recebido “intelligence” a garantir-lhe que a Rússia ia fazer “minor incursions” em território ucraniano, sobretudo no Donbass. Mas quatro dias antes da invasão, a 20 de fevereiro, o Secretário de Estado Blinken já falava, na ONU, num “provável ataque a Kiev pela Bielorrússia”.
O que terá feito Putin mudar de ideias em poucos dias, transformando um primeiro plano de “Donbass com esteroides” numa opção maximalista de querer tomar a Ucrânia toda? A Rússia ameaça com “guerra total”, mas soa quase sempre a falta de argumentação realista perante isolamento crescente. Moscovo nega com palavras o que faz no terreno. Chega a fazer mais: inverte o ónus – acusa a Ucrânia dos crimes que os russos somam na invasão. É um universo orwelliano, em que a verdade é transformada pela linguagem, imposta à força pela lei do agressor.
Acima de tudo, a Rússia tem-se caracterizado pela ineficácia: precisou de quase três meses para tomar Mariupol, uma cidade de dimensão média – e só o fez pela destruição geral. Falhou rotundamente a capital, Kiev, e deixou escapar a segunda maior cidade, Kharkiv, logo nos primeiros dias. Meses depois, foi humilhada na contraofensiva ucraniana para retomar o controlo desse oblast. E a retirada (recuo?) das tropas russas para a margem esquerda do rio Dnipro é tão misteriosa que apenas prenunciou bombardeamentos das forças de Moscovo para Kherson quatro dias depois.
8 - A RÚSSIA JÁ PERDEU: MESMO QUE GANHE TERRITÓRIO. E PUTIN, COMO PODE SAIR DISTO?
“Nenhuma palavra pode descrever o que vi e senti” (Ingrida Simonyte, primeira-ministra da Lituânia, depois de ter visitado Borodyanka)
Em várias dimensões, a Rússia já não pode sair bem. Isto não será esquecido. A Rússia vai deixar de ter lugar à mesa entre as nações respeitáveis com quem se pode lidar. Será uma espécie de Coreia do Norte em ponto gigante, à porta da Europa (em parte nela, na verdade); Moscovo terá um problema de reputação para décadas, gerações. Vai sair disto com um atraso de vários anos, um recuo ao pior da URSS. E Putin? Tentou com esta jogada fazer da Rússia um “novo Império do Meio”, na cada vez mais clara dualidade EUA/China. Mas errou completamente na análise e, sobretudo, na dose. A China, “parceira ilimitada”, dá sinais crescentes de desconforto com o eternizar do conflito armado. Que não lhe convém.
“A história e a prática provaram que as sanções não resolvem problemas e podem até criar problemas novos”, lembra Zhao Bentang, embaixador da China em Portugal. Nestes 10 meses, e após nove pacotes de sanções da UE a Moscovo, a China aumentou em 40% as trocas comerciais com a Rússia – de 140 mil milhões de dólares para 200 mil milhões. A Índia teve salto ainda maior: viu crescer a sua relação comercial com a Rússia em 120% (de 9 mil milhões pré-guerra para 30 mil milhões até 2025). Fica mais fácil de compreender porque é que Xi Jinping e Modi não encostam Putin à parede, no que toca à vontade de travar a guerra. No caso da Índia, a Rússia é o seu maior aliado.
Moscovo é fiel da balança na rivalidade entre Pequim e Nova Deli. E há, nas últimas décadas, um alinhamento destes três “players” na crítica ao domínio norte-americano em várias áreas. É certo que os EUA têm vindo a aproximar-se da Índia, para evitar o excesso de poder chinês no Indo-Pacífico (veja-se o QUAD, o Diálogo Quadrilateral de Segurança promovido pelos EUA, com Austrália, Índia e Japão). Mas no global ainda há muito maiores pontos de contacto entre Índia e Rússia do que entre Índia e EUA. E a Guerra da Ucrânia, pelo menos até agora, reforçou esta tendência, em vez de a inverter. Lavrov anunciou proposta da Rússia para terminar a guerra: “desnazificação”, desmilitarização (o fim do exército ucraniano), aceitação por Kiev da perda das 4 regiões anexadas por Moscovo e garantias de segurança para a Rússia (Ucrânia nunca na NATO). Obviamente, não vai acontecer.
9 - O GRANDE RISCO: QUE O TEMPO E A REPETIÇÃO NORMALIZEM O HORROR
“Ninguém consegue ficar espantado durante semanas. Ninguém aguenta. Isso não seria humano” (Gonçalo M. Tavares)
O prolongar do conflito leva a uma fadiga mediática, o passar dos dias pode “normalizar” o visionamento dos bombardeamentos, dos mortos, da destruição. O que vemos nas imagens das cidades bombardeadas, dos corpos de civis carbonizados não nos parece real. Equivale ao que vimos durante anos apenas nos filmes – e a sua repetição, em vez de aumentar o nosso alerta de indignação, acaba por retirar gravidade a cada evento inaceitável. É isto que temos, todos os dias, de combater. Para não nos perdermos do essencial.
A Ucrânia somos nós porque se a Ucrânia cair é a segurança da Europa que se desmorona. Todos os dias os ucranianos nos têm dado uma prova eloquente de como isto pode ser verdade. A força moral de quem defende o seu território, a sua terra, a sua nação é muito mais poderosa do que a miséria moral de quem agride sem razão. Putin terá menosprezado os efeitos disto não ser comparável ao que já fez na Chechénia ou na Síria; desta vez, as reações do mundo ocorrem ao minuto. O agressor tem táticas e procedimentos do século XX; o agredido tem do seu lado milhões de cidadãos que pressionam os seus líderes a ajudar a Ucrânia, graças a meios tecnológicos do século XXI. Pode até haver uma grande conferência internacional sobre a Paz – mas sem a Rússia.
Moscovo não cederá na posição de considerar as quatro regiões anexadas ilegalmente (Donetsk, Lugansk, Zaporíjia, Kherson) território russo, por muito que nem sequer as controle na totalidade. A Ucrânia não cederá no direito de proteger a integridade e soberania de todos o seu território. Kiev pretende uma conferência de Paz para legitimar internacionalmente os pontos que exige para negociar o pós-guerra. E isso, no atual quadro, impede um processo em que Ucrânia e Rússia se sentem à mesma mesa. Kiev pode marcar mais pontos entre aliados na NATO e na UE, mas tem um longo caminho a fazer para somar simpatias no “Sul Global”. Mesmo que desejam “a paz”, inúmeros países de África, Ásia, Médio Oriente e até América do Sul mantêm-se demasiado dependentes da Rússia nos planos económico e militar. As viagens de Kuleba a África e ao Médio Oriente não surtiram, por enquanto, os efeitos desejados.
10 - 2024, A HORA DA VERDADE
“Mantenha-se perto dos americanos; mantenha-se firme no apoio aos ucranianos e na defesa da Liberdade e da Democracia, em todo o lado” (Boris Johnson, conselhos a quem o sucedesse na chefia do governo de Londres, discurso de despedida no Parlamento)
E se na Casa Branca estivesse Trump em vez de Biden? Talvez a Ucrânia, dez meses depois, já fosse agora uma espécie de protetorado russo. Talvez. Pelo menos não teria havido esta ajuda quase sem limites de Washington a Kiev. É certo que os pacotes de ajuda da Administração Biden têm merecido apoio bipartidário no Congresso, mas a cada votação com menos congressistas republicanas a dar o seu apoio.
O compromisso que os democratas mantêm com a defesa da Liberdade e de valores que nos parecem essenciais já não é acompanhado com tanto fervor pelos republicanos, cada vez mais infetados com o vírus trumpista de negacionismo eleitoral, contestação autoritários à separação de poderes e uma estranha e perigosa atração por regimes autoritários em que essas garantas de verificação quase não existem, perante o poder tendencialmente ilimitado do homem forte – leia-se Putin, que sempre exerceu um ascendente mais do que suspeito sobre Trump.
Uma boa parte da direita radical americana, que nos últimos anos se foi apropriando do controlo do Partido Republicano, em vez de endossar claramente um apoio ao Presidente Biden na travagem à agressão russa, tem um fascínio pelo músculo autoritário do Putin e desejava que Trump conseguisse ter um poder semelhante em Washington. Ora, neste contexto de perigo antidemocrático a ameaçar os Estados Unidos, é fácil perceber que a hora da verdade aparecerá em 2024.
Putin estará a jogar nisso. Sabe que a Rússia terá muito mais condições de lidar com um “conflito congelado”, a prolongar-se por mais dois anos, sem vencedor nem vencido. Com as suas tropas, ainda que a denunciar falhas e limitações inesperadas no terreno, a ocupar ilegalmente uma percentagem relevante de um país enorme como a Ucrânia. Se os EUA voltarem a uma liderança isolacionista e de egoísmo nacionalista, Putin terá caminho livre para tratar do que na altura restar de uma Ucrânia martirizada. Sem a continuação do apoio quase ilimitado dos EUA, que neste momento reúnem perto de 90% do total da ajuda militar dada a Kiev desde 24 de fevereiro, o tempo passará a correr a favor do ditador de Moscovo.
Putin não tem que gerir opinião pública livre e esclarecida; já europeus, norte-americanos, canadianos e australianos têm que explicar ao pormenor cada decisão difícil. É muito diferente. Temos que nos preparar para um esforço longo. Já passaram 310 dias mas, muito provavelmente, ultrapassará muitas barreiras temporais: 400 dias, 500 dias; um ano, dois anos, quem sabe bem mas que isso. Tem tudo para ser longa, indefinida, prolongada, confusa.
Quem está a ganhar? Quem está a perder? Quem define? Quem se atreve a responder? E a Rússia, depois desta guerra: que tipo de comportamento terá? Estará condenada a ser um “bully” arrogante por décadas? Zelensky continua a ser ouvido, dez meses depois. A este nível, será caso único, neste tempo mediático de ciclos cada vez mais curtos em que vivemos. Tem conseguido manter pressão no apoio internacional. Mas… até quando?