Desafios da Mente

"Ou era a perna ou era eu" 

Todos os anos, surgem cerca de 400 casos de cancro infantil, em Portugal. Aos 14 anos, Beatriz Campos entrou para as estatísticas. Agora, com 20, recorda o cancro, a cirurgia, que levou à amputação da perna, e as dificuldades que sentiu. Fora desta entrevista não podia ficar a paixão pela dança, que nunca desapareceu.

Ana Rute Carvalho

Mário Cabrita

A paixão pela dança

"Acho que a dança significa tudo."

Beatriz começou a dançar aos três anos. O "gostinho" de andar pela casa sempre a dançar e o tempo que passava a ver ballet levaram-na a ter aulas de dança. A paixão ficou ainda mais forte e nunca mais desapareceu.

Quando lhe perguntam o que significa para ela dançar, confessa que é complicado explicar. Dançar significa "tudo", é "onde sou realmente eu".

Apesar de ter feito uma pausa de cinco anos, para praticar equitação, acabou por regressar às aulas de dança em 2014: "Já sentia falta daquele ambiente".

Foi no final de um ensaio que Beatriz percebeu que algo não estava bem. Quando estava a trocar de roupa, reparou num alto na parte debaixo do joelho. Pensou que fosse uma nódoa negra, daquelas que costumava fazer e que nem se lembra onde. "Sou um bocado distraída".

No dia seguinte, a "nódoa negra" tinha desaparecido, mas Beatriz não conseguiu fazer a aula de Educação Física com dores. O pai foi buscá-la à escola e dirigiram-se para o hospital.

O diagnóstico

"A primeira coisa que o médico me disse foi: 'Princesa não tenho boas notícias para ti'."

Nas urgências, depois de fazer uma radiografia, disseram-lhe que não era nada e que se continuasse com dores, devia marcar uma consulta na ortopedia.

Como as dores não passavam, acabou por ser vista por um especialista naquele dia. Depois de analisar o exame que tinha sido feito nas urgências, o médico disse qual era o diagnóstico. Pela primeira vez, ouviu que tinha um osteossarcoma na tíbia e, partir daí, começou uma nova etapa na vida de Beatriz.

Beatriz lembra-se muito bem da primeira coisa que o médico lhe disse assim que entrou no consultório. "Princesa, não tenho boas notícias para ti. Tens um osteossarcoma na tíbia e temos de tratar isso o mais rapidamente".

As palavras deixaram-na confusa. Nunca tinha ouvido falar "daquele palavrão".

"Fiquei um bocadinho sem saber o que era aquilo, porque o nome não me dizia nada. Nunca tinha ouvido falar daquele palavrão na minha vida. Não sabia o que era."

A explicação chegou através do médico, que lhe perguntou se sabia o que era o IPO. Sim, foi a resposta. Beatriz sabia que se tratava do Instituto Português de Oncologia, que trata doentes com cancro.

A primeira coisa que fez quando recebeu o diagnóstico foi perguntar se podia continuar a dançar. Não, não podia. O médico explicou que era uma lesão no osso, que podia agravar com o exercício físico.

Sem saber ao certo a gravidade do cancro, Beatriz começou logo a quimioterapia e só depois fez a biópsia. Após seis meses de tratamentos, chegou a altura de fazer a cirurgia que lhe mudaria a vida para sempre.

Durante a operação, uma artéria ficou obstruída, os médicos não perceberam e a perna começou a ficar com gangrena, ou seja, os tecidos estavam a morrer devido à perda de fluxo sanguíneo.

Beatriz teve que voltar ao bloco operatório para fazer um bypass e conseguir restabelecer a circulação sanguínea na perna. Mas as más notícias não tinham acabado: estava com uma septicemia, uma infeção no organismo.

A amputação da perna

"Preferi mil vezes estar sem um membro e continuar a fazer a minha vida, do que acabar ali sem ter pelo menos tentado."

Deitada numa cama dos cuidados intensivos, aos 14 anos, é confrontada por uma dura realidade, quando uma equipa de profissionais de saúde lhe explica o que estava a acontecer. Se a septicemia entrasse na corrente sanguínea, acabaria por morrer. A única opção era amputar a perna.

A situação foi analisada por uma equipa médica em conjunto com os pais, mas a última palavra coube à Beatriz. Para quem a decisão era "bastante óbvia".

Após a amputação da perna, veio todo o processo de reabilitação e as dificuldades associadas. Beatriz lembra-se que uma das coisas que mais a ajudou foi o facto de ter um objetivo a atingir: voltar a dançar.

"Tinha um objetivo e quanto mais depressa eu conseguisse atingir aquele objetivo, mais depressa começava a fazer aquilo que mais gostava."

A fisioterapia começou, juntamente com a mentalização de que teria de colocar uma prótese para conseguir atingir o objetivo final. Beatriz fazia fisioterapia todos os dias, durante cerca de duas horas. Quando voltava a casa, repetia os exercícios.

Começou por andar de cadeira de rodas. Dois meses depois, já andava de canadianas. Assim que recebeu a prótese, a equipa médica que a acompanhava deu-lhe até um ano e meio para voltar a andar. No entanto, seis meses depois, voltou ao palco para dançar, já sem canadianas.

Confessa que a adaptação à nova realidade foi complicada. O que mais lhe custou foi depender de outras pessoas, quando sempre foi muito independente. Custou-lhe ter de pedir ajuda e sentia-se frustrada por não conseguir fazer as mais simples coisas que antes não tinha problemas em fazer.

"Sempre fui trabalhadora para conseguir voltar a ter a minha independência e não ter de depender, no meu dia a dia, das pessoas que estavam à minha volta."

Com o passar do tempo, foi-se habituando e aprendeu a aceitar-se como é. Impôs metas e, aos poucos, conseguiu alcançá-las.

As dificuldades

"As minhas maiores dificuldades, ao longo do tempo, foi o início, o ter de pôr a prótese e o voltar a aprender a andar. Porque eu não sabia como é que se andava."

Durante quatro meses, Beatriz esteve deitada numa cama de hospital: "Já não sabia o que era andar". Foram dias difíceis, mas a fase que se seguiu também foi dura: a adaptação à nova realidade, pois teve de voltar a aprender a andar, agora com uma prótese.

No dia a dia, foram surgindo alguns obstáculos, como subir escadas ou comprar sapatos. Confessa que sempre gostou muito de sapatos. Mas ter um tipo de calçado que gosta e que dê na prótese é difícil.

Beatriz diz que a operação "mudou tudo". Mas as principais mudanças foram no modo de ver o mundo, nos limites que agora têm de ser impostos e nas alternativas para superar os obstáculos.

Desde o diagnóstico até hoje, Beatriz recebeu o apoio da psicóloga do IPO e da médica que acompanhou todo o processo. A família e os amigos foram essenciais. A professora de dança foi a grande confidente, desde o primeiro dia.

"Durante este processo todo, posso dizer que, se calhar, o meu psicólogo foi a minha professora de dança. Sempre esteve lá para mim, sempre me apoiou, sempre me ouviu, sempre me deu conselhos. E, sem dúvida, foi a minha maior confidente durante este tempo todo. "

Confessa que sempre teve muita força, mas ainda assim tinha dias em que só lhe apetecia chorar e ficar sozinha. A força foi encontrada nas pessoas que a rodeavam e nas coisas que gostava.

"Sempre achei que devia estar sempre com um sorriso na cara. Se eu transmitisse que estava bem, os outros estariam bem e conseguiriam dar-me energia para eu me conseguir estabilizar e conseguir ficar bem."

É com o mesmo tipo de mentalidade que deixa uma mensagem a todos aqueles que estão a passar por uma situação semelhante:

"Se eu consegui, eles também vão conseguir. Têm de acreditar, porque se não acreditarmos as coisas são muito mais complicadas."

O futuro

"O poder ajudar alguém é uma coisa que eu quero fazer. Sem dúvida."

Atualmente, está a terminar o 12.º ano e a dança continua presente na sua vida. Aliás, durante a quimioterapia, não parou de fazer aquilo que mais gosta. Para isso, a médica alterava-lhe os ciclos de tratamento para conseguir subir ao palco e dançar.

Agora, o futuro traz-lhe a certeza que quer continuar a dançar, porque é assim que se sente realizada. Não o espera fazer profissionalmente, mas diz que, se não for por obrigação, irá dançar para o resto da sua vida.

"Porque é na dança que eu consigo transmitir o que não consigo expressar verbalmente. O meu corpo consegue."

Entre as opções em aberto para o futuro estão duas áreas a que esteve ligada durante todo este processo: a fisioterapia e a psicologia. Ajudar os outros é uma das coisas que quer fazer.

Últimas