Acidente no Elevador da Glória

Glória ferida: seguir viagem ou não?

Não estava dentro do Elevador da Glória. Estava na rua, a caminho de casa, quando ouviu o estrondo. Viu as pessoas a correr, ouviu os gritos, sentiu a confusão. Por segundos, ficou parada, como se o tempo tivesse congelado. Depois viu e reviu as imagens na televisão. A carruagem que tantas vezes viu subir e descer, tinha descarrilado, esmagada contra o que lhe apareceu pela frente. Não sofreu ferimentos. Mas, dias depois, sentiu que o corpo e a mente não conseguiam desligar.

RODRIGO ANTUNES

SIC Notícias

Não acompanhei nenhum doente que tenha presenciado o acidente do elevador da Glória mas esta história não me é estranha. É precisamente assim que muitos chegaram ao meu consultório ao longo dos últimos anos: foram ou não protagonistas diretos mas testemunharam sem exceção um evento traumático — acidentes rodoviários, incêndios, assaltos, partos traumáticos — e a história repete-se: a imagem fica gravada e o cérebro não sabe desligar.

Trago-vos esta história porque vos quero contar. O que acontece nestes casos?

O cérebro regista uma ameaça. A amígdala dispara alarmes e o corpo responde em consonância: o coração e a respiração aceleram, o sono desaparece, estamos preparados para o pior. E estaria tudo bem se ficássemos por aqui – isto é uma reação normal. Mas na PTSD (Perturbação de stress pós-traumático), este alarme interno não desliga.

Mesmo quando o perigo já passou, o corpo continua a reagir vezes sem conta como se o perigo ainda estivesse lá. É como viver com um detetor de fumo que dispara todos os dias, mesmo sem fogo.

A pessoa revive o momento em sonhos ou flashbacks, evita locais ou conversas que a façam lembrar o que aconteceu, anda em permanente sobressalto com barulhos ou situações banais, sente-se desligada da vida, como se estivesse em modo automático.

É como se o trauma tivesse ficado preso entre as gavetas da memória que assim não dão para fechar e regressam sempre e de modo inusitado.

Na minha experiência clínica, o que mais marca não é o acidente em si, mas a maneira como a pessoa vive esta experiência. O que aprendi? Que cada pessoa reage de forma diferente.

Duas testemunhas do mesmo acidente podem seguir caminhos opostos: uma recupera ao fim de dias, outra carrega a imagem durante anos. O que muda? A vulnerabilidade de cada um (a bagagem que a pessoa traz consigo), a avaliação que cada pessoa faz perante uma ameaça (não é tanto sobre o que acontece, mas sobre o que sentimos quando acontece) e os momentos que se seguem (a forma como processamos ou não o que sucedeu).

Entram no consultório com a família que quer uma resposta: “Vai ter uma perturbação de stress pós-traumático (PTSD)?”. A resposta crua e honesta é esta: não sabemos.

A dúvida incomoda. Mas na saúde mental, precisamos de tempo. O que é que queremos fazer então? Não fingir que não é nada. Não fingir que é tudo. Porque no pós-trauma, o que é “normal”; pode ser assustador e o que parece leve pode não ser. Mas, no fundo, o que mais importa nas primeiras semanas pós-trauma não é prever o que vai acontecer. É não deixar a pessoa sozinha.

Como aprendi nos meus primeiros anos de formação – sem “patologizar”, sem “psicologizar” e sem “farmacologizar”. A nossa função não é apressar o processo, é garantir que ele decorre em segurança.

Texto de Maria Moreno, médica Psiquiatra


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