Abusos na Igreja Católica

"Dar voz ao silêncio": personalidades apelam à denúncia de abusos na Igreja

O desafio foi lançado a figuras de vários quadrantes da sociedade portuguesa, entre os quais o antigo Presidente Ramalho Eanes, pela Comissão Independente para o Estudo de Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica Portuguesa.

Mykhailo Lukashuk/Getty Imagens

SIC Notícias

Ana Lemos

Sob o lema "dar voz ao silêncio", Pedro Strecht, coordenador da Comissão Independente (CI) que está a analisar os casos de abuso que envolvem membros da Igreja Católica, propôs um desafio a membros de várias áreas da sociedade civil.

E porquê? Apesar de muitas vítimas adultas já terem revelado "situações deste tipo pelas quais passaram enquanto crianças" através do preenchimento do inquérito on-line, por telefone, carta ou entrevistas presenciais, a CI acredita que "continua a existir uma barreira intransponível de medo, vergonha e culpa que impede outros de também darem o seu testemunho".

Com o contributo da sociedade civil, a CI espera que esse muro possa ser quebrado e com "o sincero intuito de que, sob anonimato, qualquer pessoa possa ainda enviar o seu depoimento dando finalmente voz ao silêncio”.

Posto isto, um grupo composto por "personalidades das mais diversas áreas profissionais, sociais e contextos individuais" foi desafiado a, através da escrita de um pequeno texto ou até de uma simples frase, responder a esta questão: "O que diria a alguém adulto que, em criança possa ter sido abusado sexualmente, para finalmente dar voz ao seu silêncio?”

O crime mais repugnante e mais monstruoso que pode acontecer a uma criança é a violação ou abuso sexual. E é-o sempre. Mas é ainda mais marcante e revoltante quando praticado por alguém próximo, em quem a criança deposita confiança. E é um sofrimento que deixa marcas profundas para sempre. E se apenas mais tarde, talvez na idade adulta, a pessoa se apercebe do mal que lhe foi feito, deve sempre reportar esse crime, denunciá-lo, não só para que o criminoso não repita o mesmo crime com mais crianças, mas, também, porque os criminosos – sobretudo os monstros que abusam de crianças – devem ser punidos, com mão forte, exemplar. E também tratados na área da Psiquiatria. Não podemos aceitar tanta indiferença e sofrimento, pelo que temos de fazer tudo para termos não só crianças como adultos mais felizes e com horizontes de mais dignidade. Não podemos repetir apenas a frase de Nelson Mandela: “A Criança é o projecto mais belo e mais importante da Humanidade. Temos de transformar este projecto em realidade! (Manuela e António Ramalho Eanes)

Perante uma pessoa adulta que tenha sofrido abuso pensaria: “Não será possível esquecer, será necessário cuidar do corpo portador do passado doloroso. E o primeiro passo será falar, despertar o corpo, voltar a fazê-lo respirar, para que até a pele trabalhe o trauma a passo do pensamento. Mas até dar esse primeiro passo, da decisão de cuidar, há uma caminhada igualmente dolorosa, já que é preciso reavivar acontecimentos e a vergonha que se sentiu também regressa impedindo a ação.

Diria

“A vergonha não é tua., é do adulto abusador, podes devolver-lha. “

Diria

“Há mais como tu”

Diria

“Quando te libertares da vergonha que não te pertence poderás respirar.”

Diria a pessoas que não conseguem ver a importância de cuidar da sua própria dor:

“Falar poderá salvar outros (Beatriz Batarda)

Porque haverá um adulto, vítima de abusos sexuais em criança, de querer reviver, agora, esse pesadelo denunciando o agressor? Não tendo qualquer obrigação de o fazer - e este é um ponto essencial -, a decisão de avançar para a denúncia do crime ocorrido, além de permitir uma eventual punição dos criminosos e daqueles que os encobriram, dá dois contributos de enorme importância. Primeiro, contribui para uma maior proteção das presentes e das futuras vítimas. Quanto mais vítimas do passado denunciarem os crimes de que foram alvo, maior coragem terão as presentes e futuras vítimas para denunciarem os abusos sexuais de que estão a ser alvo. Segundo, sensibiliza a sociedade para uma cultura de tolerância zero em relação aos abusos sexuais e para as responsabilidades indeclináveis das organizações, onde se inserem os abusadores, na prevenção destes crimes e na proteção total das vítimas (Jorge Moreira da Silva)

A coragem vai-te servir para respirar, deixar entrar o ar a plenos pulmões, projectar o teu grito, para depois poderes cantar (Maria João Pires)

Recorde-se que, no final do ano passado, o pedopsiquiatra Pedro Strecht foi nomeado pela Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) para coordenar a Comissão Independente para o Estudo dos Abusos de Menores na Igreja, criada para reforçar o atendimento dos casos de alegados abusos sexuais e o seu acompanhamento a nível civil e canónico.

Nos primeiros seis de meses de atividade, a CI validou mais de 335 depoimentos. Desses, 17 casos foram enviados ao Ministério Público para investigação. Os dados apurados até então indicam que 56,9% das vítimas que deram testemunho à comissão eram homens e 39,7% eram mulheres. Em relação aos abusadores, a maioria são homens, com predomínio de padres, mas há também mulheres, nomeadamente religiosas e catequistas

A maior parte das vítimas caracterizou os abusos sofridos como “toque de outras zonas erógenas do corpo ou beijos nas mesmas zonas” ou “manipulação de órgãos sexuais”, mas há também casos de sexo oral (15,6%), sexo anal (10,8%) ou cópula consumada (5,9%)

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