Cultura

"Que mulher é essa?" É A Garota Não, artista que pinta o retrato deste tempo

Nasceu em 1983 e viveu sempre rodeada de música. Cresceu e fez-se mulher no bairro 2 de Abril, em Setúbal, onde as canções de Zeca Afonso lhe chegavam pelas mãos do pai. Aos 10 anos, aprendeu a tocar piano numa escola de música. “O meu pai nunca me deu ténis de marca mas sempre teve a visão de que conhecimento é a maior herança que se pode deixar".

Facebook / A Garota Não

Ana Luísa Monteiro

Pedro Rebelo Pereira

"Que mulher é essa / Que eu vejo na telenovela / As mulheres à minha volta / Não se parecem nada com ela". Sem grande aparato, quer no que diz respeito ao cabelo ou à indumentária, A Garota Não subiu ao palco dos Globos de Ouro com simplicidade e poesia, tal como faz em todos os seus concertos.

No Coliseu dos Recreios, nenhuma mulher se parecia com ela. As palavras de combate escritas num pequeno pedaço de papel, a sandália rasa “ao estilo Astérix” que a deixava com os pés bem assentes no chão, o aviso ao maestro: “Eu sou do 2 de Abril, que é um bairro lixado em Setúbal”, deixaram claras as suas intenções: veio para ser, mais uma vez, veículo de uma mensagem que marcaria quem estava no Coliseu e quem estava no sofá, em casa, a assistir à cerimónia.

Em julho, numa entrevista à Lusa, apresentou-se como “veículo de uma mensagem”. “A mensagem chega-me e eu retransmito”, acrescentou. Mas que mulher é esta? Apoderámo-nos das palavras da própria, na canção “Que mulher é essa?”, que faz parte do álbum “2 de abril” para falar sobre Cátia Mazari Oliveira, de alter-ego “A Garota Não”.

Nasceu em outubro de 1983 e viveu sempre rodeada de música. Cresceu e fez-se mulher no bairro 2 de Abril, em Setúbal, onde as canções de Zeca Afonso lhe chegavam pelas mãos do pai e muitas outras, de Gipsy Kings à música eletrónica, atravessavam as paredes até a sua casa.

Aos 10 anos, aprendeu a tocar piano numa escola de música. “O meu pai nunca me deu ténis de marca mas sempre teve a visão de que conhecimento é a maior herança que se pode deixar", pode ler-se no site da cantora.

“Pouco depois vem a guitarra e as primeiras composições com amigos. E as palavras que sempre me tinham dançado soltas no lápis e na cabeça, ganhavam pela primeira vez um espaço para se reunirem num significado maior: deixavam de ser ideias soltas e passavam a ser histórias, protestos, catarses, canções. E tem sido assim: venho de um dos fins do mundo de pé descalço e com muita vontade. Toco guitarra, piano e percussões. Mas pouco. Gosto de cantar e sobretudo gosto de escrever”.

Antes de fazer música, fez coisas muito diferentes, trabalhando na área do desporto e numa caixa de supermercado. Talvez a vida longe dos holofotes e das galas lhe tivesse trazido o poder que agora carrega na voz: o poder de retratar um Portugal desigual, com crises a cada virar da esquina que pesam nos ombros dos que menos têm, um Portugal machista, onde os números da violência doméstica continuam a subir de ano para ano, um Portugal precário com milhares de pobres.

Quem teve a oportunidade de ver um espetáculo de A Garota Não este ano sabe que todos estes temas estão em cima do palco. A meio do concerto, a cantora pega num caderno de capa preta, em luto, e começa a passar páginas. Em cada uma está o nome de uma mulher morta pelo companheiro este ano. O momento é longo, os nomes são muitos e o público cala-se em reflexão, batendo apenas palmas.

Lia Pereira, jornalista da BLITZ que entrevistou Cátia Oliveira para o podcast Posto Emissor em janeiro deste ano, acredita que “todas estas experiências, tal como a sua história de vida (ter crescido num bairro social) terão certamente ajudado a moldar a cantora-compositora que ela é”. “Acima de tudo, a Cátia parece-me ser uma artista, e uma pessoa, sem medo. Nesse sentido, arrisca-se a continuar a dar voz a muita gente que sente não tê-la.”

Lançou o primeiro álbum “Rua das Marimbas”, em 2019, mesmo antes de a pandemia assolar o país e deixar a cultura em suspenso durante dois anos. Em 2022, regressa com o álbum “2 de Abril”, nome do bairro onde cresceu.

É com “2 de Abril” que dá o salto maior. É composto por 20 temas e começa com “Canção sem fim”, uma letra de luta pela arte, que dá mote para um trabalho com canções diretas, compostas sem pinças ou filtros.

"Podem decretar o fim da arte

É como decretar o fim da chuva

Há sempre alguém que sonha em qualquer parte

E a nossa voz nunca será viúva.

(…)

Podem decretar, mandar calar-te

Dizer que a nossa voz é um enguiço

Podem decretar o fim da arte

E a gente faz uma canção sobre isso".

A poesia de A Garota Não começou a chamar a atenção. No fim do ano passado, “2 de abril” foi o segundo melhor álbum para a BLITZ. Lia Pereira revela que, na hora das decisões, a redação valorizou “a qualidade da sua escrita, não só musical, como lírica”. “Diria que há algum tempo que não surgia uma voz poética tão forte, que conseguisse unir esse lirismo a um caráter interventivo, há muito arredado da música feita em Portugal (excepção feita, eventualmente, ao rap)”, continua.

Já este ano, A Garota Não foi ainda nomeada para o prémio Revelação do Ano (entregue à cantora Nena) nos prémios Play da música portuguesa.

Numa entrevista, admitiu que esteve quase para não ir à cerimónia porque não é “dada a carnavais e todo o processo que envolve estas nomeações".

“Mas durante a tarde senti que era uma oportunidade de falar sobre um assunto que me valeria a viagem, caso subisse ao palco. Escrevi um texto e fui”, contou.

O processo de escolha que lhe valeu uma nomeação para os Globos de Ouro também a deixou “dividida".

"Depois há toda aquela preocupação 'qual é o vestido que vou levar, qual é o cabeleireiro que me vai pentear?' e estar na música para mim é muito longe disso", disse.

Mesmo assim, sentiu-se lisonjeada com a nomeação e subiu ao palco tal e qual como é, com um cravo ao peito. Foi a eleita pelo jurados dos Globos de Ouro como a melhor intérprete portuguesa. Por não vir do universo pop, das músicas que passam na rádio em 'loop', é provável que muitos portugueses a tenham visto pela primeira vez ali, na televisão.

“Que mulher é essa?” que não é vista na telenovela, que não desfila na passarela, que não aparece na revista? Terá sido a pergunta de alguns portugueses. No palco foi, mais uma vez, veículo da palavra, num discurso que se tornou viral nas redes sociais e que mereceu um rasgado elogio de Carlão logo a seguir.

Recordámos o discurso de A Garota Não:

"Vivemos o tempo dos Budas, das flores de plástico e das cómodas douradas
E rimos muito alto, por cima da música alta das esplanadas
Vivemos o tempo da kombucha, do coaching, das soft skills e da gratidão
Saibamos agradecer aos bancos os juros que nos cobram na habitação
Vivemos o tempo mais corrido de sempre
Das metas, dos objetivos, do 'nem que me esfarrape'
Não há esforço que não valha a pena, seremos todos Lufth-Tap
Vivemos tempo de maioria absoluta, de posso e mando, da meritocracia
O mérito mede-se a partir dos dentes, das notas do colégio ou da demagogia?
Obrigada por esta oportunidade, um globo de ouro nas mãos de um ser tão falho
Há quem tenha muita sorte
A sorte, a mim, tem-me dado muito trabalho"

Lia Pereira concorda que este discurso nos Globos a colocou “definitivamente, num patamar diferente de notoriedade”, mas diz que o que a tem levado a mais ouvidos é outro fator:

É a adequação da sua mensagem, ou do seu comentário, aos tempos que vivemos. Creio que as suas palavras tocam quem as ouve por refletirem problemas comuns a tantos de nós. Há uma vocação realista das suas canções que vai além dos temas de que habitualmente se ocupam os artistas pop-rock contemporâneos. Por ser, de certa forma, uma raridade, acabará também por se destacar. Acredito que a Cátia ajuda a pintar o retrato deste tempo.

O talento de A Garota Não não foi gasto em vão.

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